Niède Guidon aliou ciência, coragem e compromisso social para transformar o sertão piauiense em centro de conhecimento sobre a humanidade.
Por Renato Janine Ribeiro (*)
Perdemos uma das mais influentes e revolucionárias cientistas do Brasil. Niède Guidon (1933-2025) foi uma arqueóloga brilhante — mas foi muito mais que isso. Visionária, ela aliou ciência, coragem e compromisso social para transformar o sertão em centro de conhecimento sobre o passado da humanidade e de produção de futuros.
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Niède Guidon enxergou, na Serra da Capivara, muito além das paisagens áridas. Revelou uma história desconhecida da humanidade, desmontando — ali, no interior de um dos estados mais pobres do País — um quebra-cabeça científico consolidado por décadas. Nos mais de 1.200 sítios arqueológicos catalogados no Parque Nacional Serra da Capivara, estão evidências de atividades humanas que datam de mais de 50 mil anos.
A história da ocupação do continente americano se divide em antes e depois de Niède Guidon. Até suas descobertas no Piauí, as evidências mais antigas apontavam para a presença humana há cerca de 13 mil anos. Foram dezenas de milhares de vestígios — esqueletos, pinturas rupestres, artefatos — que provocaram uma verdadeira revolução na arqueologia das Américas. Em 1991, o parque foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade.
Em 1986, Niède Guidon criou a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), em São Raimundo Nonato, a 580 km de Teresina, com o objetivo de preservar essas descobertas e torná-las acessíveis à população. Mas seu compromisso ia além da pesquisa científica. Ela acreditava que o conhecimento só tem valor se caminhar ao lado da dignidade e do desenvolvimento das pessoas.
Como uma grande observadora da humanidade, reescreveu também o presente e o futuro da pequena cidade onde se estabeleceu. A infraestrutura, a formação de guias locais, os projetos sociais, as escolas, a fábrica de cerâmica, as guaritas operadas por mulheres — tudo fazia parte do projeto de uma cientista que enxergava no território um campo de possibilidades.
Conhecê-la foi um privilégio. Há dois anos, estive com colegas da SBPC em sua casa, em São Raimundo Nonato. Lembro do acolhimento caloroso, da liderança silenciosa, do entusiasmo com que compartilhava suas descobertas e sua luta.
Niède Guidon foi combativa. Enfrentou o ceticismo da comunidade internacional, a negligência do poder público e as dificuldades concretas de trabalhar na região mais seca e esquecida do País. Mas nunca cedeu. Como a Caatinga que defendeu com fervor, foi resiliente e generosa, mesmo nas condições mais adversas.
Em 2013, destinou grande parte do prêmio de R$ 300 mil que recebeu da Fundação Conrado Wessel para a conclusão das obras do aeroporto de São Raimundo Nonato. Acreditava que ele poderia atrair turistas e ampliar o acesso à região. Agora, o prefeito da cidade solicitou à Assembleia Legislativa do Piauí que o aeroporto passe a se chamar “Aeroporto Internacional Doutora Niède Guidon”.
Sua trajetória é singular. E seu impacto, imensurável. Deixou-nos museus, parques, espécies que levam seu nome, filmes, livros, memória. Mas, sobretudo, nos deixou a certeza de que o passado pode ser uma força transformadora do presente. E que o sertão também pode ser centro.
A história da ocupação humana no continente americano será reescrita muitas vezes ainda. Mas todas elas terão de passar por ela. Porque Niède Guidon não apenas estudou a origem da humanidade — ela nos lembrou do quanto somos capazes de reconstruí-la com ética, ciência e compromisso.
A SBPC se despede com gratidão e reverência. E com o compromisso de manter vivo o legado de uma mulher que escavou não apenas a terra, mas a alma de um Brasil profundo.
Obrigado, Niède.
(*) Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade). https://amzn.to/3L9TFiK
Publicado originalmente como Editorial do Jornal da Ciência da SBPC.
Foto: FUMDHAM
