Niède Guidon, arqueóloga de idéias

Não é exagero dizer que, se parte importante da saga dos primeiros brasileiros está preservada, é graças aos esforços de uma única mulher, a arqueóloga Niède Guidon. Verdadeira guardiã dos tesouros arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, Niède empenhou mais de 30 anos de sua vida à descoberta, ao estudo e, sobretudo, à proteção das relíquias pré-históricas encontradas na região.

Roberta Jansen

 

Há anos, a arqueóloga trava uma luta solitária para obter mais recursos para o parque e transformar a região num pólo turístico, levando desenvolvimento sustentável para uma das áreas mais pobres do país. Considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1991, o parque abriga em seus 129.140 hectares mais de 700 sítios arqueológicos (500 deles com pinturas rupestres). É um verdadeiro museu a céu aberto, com mais de 30 mil pinturas revelando o cotidiano dos primeiros habitantes do país.

Lá já foram descobertos também esqueletos humanos com dez mil anos e fósseis de animais extintos, como tigres-de-dentes-de-sabre, preguiças-gigantes e mastodontes, além de cerâmicas e artefatos. Mas tudo isso corre o sério risco de se perder. À crônica falta de recursos e funcionários, soma-se agora o risco de invasões, com o assentamento precário de mais de 700 famílias em terrenos limítrofes.

Aos 71 anos, Niède não desiste. Continua lutando pela preservação do parque, onde trabalha há 34 anos e mora há 13, e do patrimônio arqueológico do país. Sua luta em pleno sertão já lhe rendeu ameaças de morte, sobretudo de caçadores locais que insistem em invadir o parque. Mas essa filha de uma família de classe média alta de Jaú, no interior de São Paulo, que passou mais de 20 anos em Paris, parece nada temer.

Todos os dias ela percorre o parque em sua caminhonete Nissan, devidamente munida de facões e machados. E continua, obstinadamente, denunciando as irregularidades na região e a falta de proteção aos tesouros do parque. Sempre foi assim na vida da arqueóloga. Em 1961, aos 28 anos e já formada em história natural pela USP, ela decidiu estudar arqueologia na Sorbonne, em Paris, onde acabou fazendo o doutorado.

Perguntada, certa vez, se a decisão causara estranheza na família, ela respondeu, no melhor estilo Niède: “Nunca perguntei nada a ninguém. Trabalho desde os 18 anos e faço as coisas de acordo com o que penso”. A arqueóloga voltou ao Brasil no início de 64. Mas, com o golpe militar, Niède, ligada à esquerda, se viu forçada a retornar à França, onde fez carreira na Escola de Altos Estudos — a conceituada instituição de pós-graduação em ciências sociais de Paris.

Nas rodas intelectuais da capital francesa, ela se tornou amiga de Fernando Henrique Cardoso e Celso Furtado. Niède só voltou definitivamente ao país em 1991, cedida pelo governo francês para administrar o Parque Nacional da Serra da Capivara.

— Fiquei muito feliz em ganhar o prêmio do GLOBO, foi uma das raras coisas boas que aconteceram neste momento difícil — diz a arqueóloga. — Mas acho que não mereço. Porque eu vim morar no sertão para não deixar essa riqueza se perder e ajudar a tirar essas pessoas da miséria. E minha luta ainda está longe do fim.

Leia entrevista com Niède Guidon:

O Globo – De que forma o conhecimento da pré-história é importante para entender o mundo de hoje?

Niède Guidon – É importante sabermos como a sociedade humana evoluiu, como essa tecnologia tão desenvolvida que temos hoje começou. E, sobretudo, é importante para constatarmos que essa tecnologia resulta da necessidade dos homens de viverem e se defenderem. Somos animais frágeis, não temos garras, nossos dentes são fracos. Não corremos muito, não subimos em árvores, não somos bons nadadores. E precisávamos garantir nossa sobrevivência em meio a uma fauna extremamente forte. A opção era desenvolver a tecnologia. Foi a tecnologia que garantiu nossa sobrevivência. Os homens compensaram sua (pouca) capacidade biológica com sua capacidade tecnológica. E a cultura nos permitiu sistematizar esses conhecimentos e transmiti-los a novas gerações. Devemos analisar hoje os limites desse desenvolvimento tecnológico, que já ultrapassou as necessidades de sobrevivência. Os homens começaram a criar novas necessidades que engendram o desenvolvimento tecnológico. O avanço do homem sobre a natureza será um dia irreversível em razão dessa necessidade de ter mais do que o necessário.

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A senhora acredita que nosso passado foi apagado pelo colonizador?

– As populações européias que chegaram no Brasil pouco se interessavam pelos aspectos culturais dos povos que aqui viviam. Eles foram totalmente dizimados. Mais de seis milhões de índios foram assassinados, é um crime igual ao de Hitler. Eles foram mortos para que aqui se estabelecesse uma sociedade branca. Hoje, em vez de reconhecermos isso e darmos aos indígenas o justo valor que deveriam ter na sociedade, buscamos encobrir o passado, apresentando os índios como animais. Em vez de limparmos a ferida até o fim e permitir sua cura, deixamos crescer uma casca grossa e continuamos nos enganando. O índio é tratado como um brasileiro de segunda categoria. As sociedades indígenas são altivas, não são mendigas. Trata-se de um povo que preferiu morrer a ser escravo, o que revela uma grande dignidade.

A senhora luta há anos pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara. Qual a situação hoje? As coisas melhoraram?

– Não, desde que estou aqui a situação só piora. Diversas pessoas se instalaram numa área limítrofe, a oeste do parque, e o Incra anunciou que iria regularizar a situação das pessoas. Com isso, mais gente correu para a região e começou a desmatar, queimar e invadir para garantir o direito de ser assentado. A área é colada no parque, que é constantemente ameaçado com o fogo. Os assentados costumam fazer queimadas para abrir áreas de plantio e, com freqüência, o fogo invade o parque. Mas há também um outro assentamento, oficializado há quatro anos, a uns oito quilômetros dos limites do parque. Dessa área sempre vêm caçadores. Porque essas pessoas recebem um pedaço de terra e R$15 mil do governo, mas não conseguem cultivar nada e continuam vivendo na miséria. Isso não é reforma agrária. É preciso dar escola, ensinar tecnologia agrícola. De que adianta dar um pedaço de areia seca? Se chove eles comem, se não chove pedem esmola na cidade. Eles queimaram boa parte da floresta que era reserva legal; não têm a mínima noção de preservação. É uma catástrofe se produzindo ao lado do parque.

E a ideia de transformar a região num pólo de turismo?

– A situação atual nos leva a repensar a atividade porque é impossível continuar com o trabalho que visava à implantação do turismo. Hoje, em vez da paisagem maravilhosa que havia, o que se vê é um favelão. Em dez dias foram presas oito pessoas armadas, algumas com rifles, andando pelo parque. Como vamos desenvolver turismo desse jeito? Além disso, as obras do aeroporto que deveria estar concluído em abril de 2005, não avançam, embora tenham sido liberados R$4 milhões. Sem aeroporto não se pode fazer nada.

A senhora diria que existe um descaso por parte do governo?

– Acho que existe descaso total, acho que nem imaginam o que é esse tesouro que temos aqui. Mas o descaso não é só conosco, é com o Brasil todo. Um país desse tamanho teve só quatro milhões de turistas no ano passado. Para se ter uma idéia, Costa Rica, México e Quênia receberam muito mais turistas. Os países utilizam seu patrimônio cultural para atrair turistas. Mas a imagem que ainda se vende do Brasil é a da mulata nua dançando no carnaval do Rio.

A senhora acredita que sua ligação pessoal com Fernando Henrique Cardoso pode atrapalhar sua relação com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva?

– Fernando Henrique foi meu contemporâneo na USP. Somos de uma geração, da qual faziam parte também o Celso Furtado e o Rubens Ricúpero, que tinha uma maneira de pensar o Brasil. Sempre dizíamos que para o país mudar teria que haver desenvolvimento social, não econômico. Defendíamos um ensino público de qualidade. Atualmente se pensa muito no crescimento econômico, no PIB, e se deixa a juventude afundar na ignorância. Eu tinha muitos conhecidos no governo FH. Mas se isso for um problema para o governo de Lula seria um atestado de pouca inteligência. O que importa não sou eu, é a Serra da Capivara, esse patrimônio maravilhoso que pode mudar a vida de todos os miseráveis daqui. A situação atual é uma vergonha, sobretudo para pessoas de esquerda. Mas a minha esquerda é diferente dessa aqui.

Mas a senhora acha que FH conseguiu pôr em prática o que defendia? E Lula não?

– Existe uma doença que se chama brasilite e que acomete quem chega ao poder. Porque é preciso fazer a famosa base de sustentação do governo. Isso é contra a natureza porque junta esquerda e direita. E os governantes ficam impossibilitados de desenvolver um projeto. Acho o Brasil inviável hoje porque todo projeto público tem que comportar desvio de dinheiro. Se não mudarmos isso, vamos continuar subdesenvolvidos por muito tempo. Nada mudou com os militares, nem com os civis. Nem com Fernando Henrique, nem com o senhor Lula da Silva.

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Fonte: O Globo, 26/12/2004, reproduzido no JC e-mail 2675, de 27/12/2004.

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