Negligência à velhice: prisão como alternativa à dignidade?

Negligência à velhice: prisão como alternativa à dignidade?

A negligência à velhice e a prisão como alternativa de amparo à dignidade dos longevos precisam virar história.


Nos primeiros dias de 2025, uma notícia circulou pela internet deixando alguns bem reflexivos com seu conteúdo: “idosas japonesas solitárias cometem crimes para irem presas”[1]. Ou seja, a prisão como garantia de dignidade.

A questão veiculada reflete a realidade de pessoas que envelhecem cercadas pela solidão e pela pobreza e que, por não terem companhia, refeições e cuidados médicos fora da cadeira, optam pela prisão para garantir amparo às suas necessidades básicas.

O que leva estas pessoas a esta prática deriva de alguns fatores, dentre os quais nos parece como mais evidente, a negligência à velhice.

Diante da realidade brasileira, podemos observar a negligência à velhice em muitos cenários, como quando nos deparamos com inumeráveis condutas em relação a esta parcela da população e a tudo que está relacionado a ela.

Citemos, a título de exemplos, a negação com relação ao envelhecimento populacional que é comprovadamente um fato, cada vez mais expressivo, bem como a dificuldade de conceituação unânime em relação ao sujeito que envelhece: velho(a), idoso(a), pessoa idosa, pessoa na melhor idade – de quem é que se fala afinal? (geralmente na terceira pessoa e quase nunca na primeira)

A ausência de políticas públicas efetivas com relação à velhice e legislações vigentes, mas ainda muito desconhecidas por boa parte da população, também são pontos preocupantes.

No Brasil, temos leis que garantem proteção de direitos às pessoas idosas desde 1998, quando, aos 08 de outubro, foi promulgada a Constituição Federal, considerada como “Constituição Cidadã”, que traz disposta em seu artigo 230, o dever solidário à família, à sociedade e o Estado de ampará-las, assegurando às pessoas com 60 (sessenta) anos ou mais sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Seis anos mais tarde, com a Lei Federal n. º 8.842, de 04 de janeiro de 1994, foi criada a Política Nacional da Pessoa Idosa, com o objetivo de assegurar os direitos sociais dessa parcela da população, mencionando condições para se promover autonomia, integração e participação efetiva na sociedade daqueles em idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

Já no século XXI, com o Estatuto da Pessoa Idosa, criado pela Lei Federal n.º 10.741/2003 (nomenclatura alterada pela Lei Federal n. º 14.423/202, era até então chamado de Estatuto do Idoso), restaram assegurados, com prioridade absoluta aos sexagenários, e de forma ainda mais prioritária aos octogenários, a formulação e o atendimento de políticas públicas, gratuidades legais, proteções de violências e abusos, entre outros.

No ano de 2015, o país tornou-se signatário da Convenção Interamericana sobre os Direitos das Pessoas Idosas, um instrumento jurídico elaborado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e que tem como objetivo o estabelecimento de metas regionais voltadas à promoção e à proteção dos que completaram 60 anos de idade ou que ultrapassaram essa faixa etária.

Os avanços legislativos vêm acompanhados de atualizações protecionistas às pessoas longevas também junto ao Poder Judiciário.

No ano de 2024, mudanças significativas foram observadas nas decisões dos Tribunais Nacionais, como na decisão do STJ (ARE 1309642), que tornou possível às pessoas de 70 anos ou mais a adoção de regime de bens mais adequado a cada relacionamento, de forma a regulamentar seus casamentos ou uniões civis, sem que sobre eles incida, única e exclusivamente, o da separação obrigatória de bens, como determina o artigo 1.641, II, do Código Civil ainda em vigor.

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Outra inovação importante surgiu com a Resolução 571/24 do Conselho Nacional de Justiça, que passou a permitir a realização de inventários extrajudiciais nos quais existam herdeiros em situação de incapacidade civil, como pessoas em situação de curatela, por exemplo, fato bastante comum à muitas pessoas idosas.

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Ao que nos parece, a legislação e os julgados têm buscado considerar o envelhecimento como uma realidade inegável, ainda que não com o mesmo dinamismo em que ele acontece.

Segundo os dados do último Censo, realizado no ano de 2022 e publicados pelo IBGE no final do ano de 2023[2], a população com 60 anos ou mais aumentou mais de 50% em relação ao ano de 2010, representada em mais de 32 mil pessoas (ou por mais 15% da população), composta em sua maioria por mulheres, em consideráveis níveis de desigualdades sócio-econômico-culturais.

Ocorre que, se seguirmos considerando as garantias legais como meras determinantes que não tocam, efetivamente, a ninguém, exceto àqueles que sejam partes envolvidas em demandas judiciais e se, somando a isso, não nos propusermos a um enfrentamento efetivo e detalhado de todas as particularidades que o processo do envelhecimento traz consigo, de forma unânime e coletiva, poderemos imaginar que a pobreza e a solidão serão a realidade apenas das pessoas idosas que preferem a prisão como alternativa apenas no Japão, segundo divulgado?

Vivemos em um país em desenvolvimento que evidencia, em muitas ocasiões, não estar preparado para o envelhecimento, o que se comprova, por exemplo, pela conduta individualizada de muitos de seus cidadãos, que agem com indiferença ao tema e a tudo que vem com ele (exceto, muitas vezes, se com relação ao assunto puder existir lucro, em grande maioria para poucos) e ainda pela ausência de efetividade e conhecimento sobre muitas dos direitos vigentes, colocando em risco a subsistência digna de muitos, diuturnamente.

Somado a isso, somos parte de uma sociedade cada vez mais envelhecida de uma maneira cada vez mais solitária (já que são muitos os casos de pessoas idosas que não têm mais ninguém que lhes seja próximo, não por opção, mas porque a maioria das pessoas nestas condições adoeceu ou faleceu) e que traz consigo condições econômicas absolutamente precárias, faltando o básico para incontáveis pessoas longevas, como saneamento e acesso a outros direitos tão fundamentais quanto, como comida, moradia, acessibilidade e inclusão (sem que aqui nem mesmo consideremos a abrangência deste termo na era digital).

A notícia referente às pessoas idosas no Japão e que causa inquietude para alguns (incluindo esta que vos escreve), tende a ser igualmente o reflexo de uma imagem nacional se não forem revistas questões a respeito do envelhecimento junto à sociedade brasileira por tudo o que aqui se expõe (sem que se esgote, por óbvio, a amplitude do tema).

A negligência à velhice e a prisão como alternativa de amparo à dignidade dos longevos precisam virar história, sem que sejamos, nós, brasileiros, igualmente e cada vez mais, personagens deste contexto e integrantes de novos episódios neste cenário.

Todavia, para que sejamos apenas leitores e não coautores de histórias similares, há muito a se fazer e isso depende de cada um de nós, agindo de maneira conjunta e absolutamente urgente com relação ao mesmo objetivo: amenizarmos a negligência e propiciarmos dignidade à velhice.

Isso é uma tarefa coletiva e urgente, caso não queiramos todos buscarmos alternativas às nossas dignidades em um futuro que só não chegará, se envelhecer não for a alternativa…

Notas
[1] Companhia, refeições e cuidados médicos: idosas japonesas solitárias cometem crimes para irem presas. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/01/19/companhia-refeicoes-e-cuidados-medicos-idosas-japonesas-solitarias-cometem-crimes-para-irem-presas.ghtml. Acesso em 30 jan 2025.
[2] https://www.ibge.gov.br

Foto de Matt Hardy/pexels.


Natalia Carolina Verdi

Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: nvadvogada@gmail.com

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Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: nvadvogada@gmail.com

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