Em cinco décadas de ensino universitário, Cremilda Medina* alcança uma geração de jovens fascinados pela tecnologia, que amam a internet com sua proposta de substituir no imaginário a rua dos contatos vivos pelas infovias de acesso à distância. A professora provoca esses jovens ao abrir as portas para alunos da terceira idade. Os novos alunos velhos chegam por meio da UATI.
Qual alinhavo aproximou Cremilda Medina do Espaço Longeviver?
Há três anos frequento os cursos da USP-UATI. Conheci Etty Veríssimo no curso Encontros Culturais, mas foi durante uma calourada que ela me abordou entusiasmada para falar sobre seu sonho de resgatar o Jornal Reproposta. Acelerada, contou-me sobre a importância do jornal nascido em 1997 pelas mãos do professor Chaparro. Em 2004, o jornal mudou de mãos. Cremilda Medina herdou o projeto. Seguindo a cartilha da intergeracionalidade de Ecléa Bossi, criadora da UATI (Universidade Aberta à Terceira Idade), Cremilda colocou os idosos para trabalhar ao lado dos alunos de pós no Fórum Permanente Interdisciplinar.
Etty, como pretende resgatar um projeto que parou em 2006? O Reproposta não parou, repousa. Vou conversar com o Dr. Egídio Dórea (sucessor de Éclea Bosi na coordenação da UATI) e vamos procurar a professora Cremilda. Depois é só convocar os ex-alunos e convidar alguns novos como você.
Etty Veríssimo alinhavou, arrematou e costurou com mãos firmes e linhas fortes o projeto Reproposta. Na primeira aula, dos vinte e tantos interessados, oito deram as caras. No decorrer do curso, cinco formaram o núcleo duro que seguiu até o fim.
Cremilda Medina nasceu em Vila Nova de Gaia, região metropolitana do Porto, em 16 de março de 1942 com o nome de Cremilda Celeste Fernandes de Araújo. Aos 11 anos, em abril de 1953, trocou as margens do D’Ouro pelas do Guaíba, em Porto Alegre. De porto em porto e do Porto ao Porto desembarca no Brasil a Miss Serpa Pinto, título conquistado por meio de conchavos a bordo do paquete de mesmo nome.
Cremilda não veio ao mundo para ganhar concursos de beleza, mas para se destacar no campo literário, nas redações das redações. As suas tinham que se sobressair por obrigação. A pressão vinha de Portugal. Seu avô, por meio de cartas, não cansava de alertá-la que Alexandre Herculano fazia parte da família, carregava Araújo no nome: para desenvolveres uma boa escrita, um estilo claro e sólio, não deixes de ler as páginas do teu parente letrado.
Recebeu do avô a coleção completa. Ao ler precocemente O Monge de Cister entendeu que precisaria se esforçar muito para alcançar uma beirada do campo literário no qual Herculano se encontrava. Certa vez, na sala de aula, quando o professor tocou no nome do ilustre autor de Eurico, o Presbítero, Cremilda não se conteve, é meu tio. Passou a ser exigida dez vezes mais.
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Na hora do vestibular, o temor de Cremilda não era com a prova, mas como contar aos pais que optaria por um curso de pouco prestígio, Jornalismo. Também prestou para Letras. Passou nos dois. Segundo lugar em um; primeiro em outro. Encarou as duas faculdades na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desde o primeiro momento conta com a amizade de Sinval Medina, amigo-namorado que se torna marido. No nome, troca o Fernandes pelo Medina. Torna-se Cremilda de Araújo Medina.
Formou-se em Jornalismo no dia 31 de março de 1964. Como primeira aluna da turma, ganhou o prêmio José Bertaso. Portanto, Cremilda deixou a faculdade direto para a Editora Globo pertencente a família Bertaso.
Seu primeiro texto publicado em um jornal de verdade foi sobre o poeta Carlos Nejar. Um professor se encantou com o material e fez a ponte escola-empresa. O poeta, mais tarde, quando Cremilda já trabalhava na Revista do Globo, contou que leu e gostou, mas ninguém guardou a prova do crime.
Na Editora Globo, como secretária editorial, seu texto recebeu um elogio de escancarar portas e janelas. Saiu da boca do consagrado Érico Veríssimo. Em uma reunião, Érico pega o texto de Cremilda, sem assinatura, e pergunta quem escreveu. O editor se desculpa, foi uma guria que acabou de entrar na empresa. Érico exclama: Bá, a guria escreve como um homem!
No contexto da época, um elogio fantástico. Cremilda ganhou força dentro da editora e comprou boas brigas como a batalha que travou com os Bertasos para publicar o desconhecido argentino Jorge Luís Borges no Brasil.
Em poucos anos, Porto Alegre se tornaria pequena para as aspirações do casal Medina. Próximo porto, São Paulo. Das margens do Guaíba para as margens do Pinheiros e Tietê. Cremilda se muda de olho no primeiro pós de Ciências da Comunicação na América Latina proposto pela USP. Foi recebida pelo saudoso professor José Marques de Melo, chefe do departamento de jornalismo. Trazia na bagagem o projeto de pesquisa A Estrutura da Mensagem Jornalística.
O porto paulista acolheu o casal. Marques convidou Sinval para abrir o curso de Editoração na USP enquanto Murilo Felisberto abria as portas do Jornal da Tarde para Cremilda Medina trabalhar e realizar sua pesquisa na prática.
A carreira acadêmica, no entanto, atraía mais o casal. Enquanto a USP não implantava o curso de mestrado, que só seria efetivado em 1972, Cremilda trabalhava na redação do JT e dava aulas no curso de Jornalismo.
Em 1975, Cremilda de Araújo Medina se torna a primeira mestre latino-americana e seu projeto de pesquisa Estrutura da Mensagem Jornalística se transforma em Jornalismo na Sociedade Industrial – Notícia, um Produto a Venda. Explica:
Se a notícia era um produto industrial, hoje um produto pós-industrial, a representação do real em uma narrativa se dá em um contexto simbólico atravessado por múltiplas forças e não apenas pelo determinismo econômico-político ou político-econômico.
A carreira do casal na Universidade de São Paulo é interrompida abruptamente. Sinval Medina, em 1975, é cassado pela ditadura militar. O que ficou conhecido como Delito Medina foi o estopim da primeira greve universitária desde 1968. O casal teme pela integridade física da família. Corre para esconder os filhos. Pessoas próximas são taxadas de subversivas. Prisão, tortura e morte pairam no ar. O crime do casal: ser professor universitário.
Fora da universidade, o casal conta com a solidariedade de amigos para sobreviver. Sinval passa por assessorias, rádios e acaba se fixando na editora Abril. Cremilda passa pela TV Bandeirantes e TV Cultura. Mas a perseguição é implacável. Deixa a TV Cultura uma semana antes do seu chefe, Vladimir Herzog, ser levado para depor nas dependências do DEOPS e de lá sair dentro de um caixão.
Quem bancou a sobrevivência de Cremilda foi o Estadão. Por dez anos, de 1975 a 1985, fez parte do quadro de funcionários do jornal O Estado de São Paulo. Oito deles como única mulher editora. Produziu textos belíssimos. Tanto tempo de casa e tanto prestígio levaram Júlio de Mesquita Neto a jurar ter sido ele (sua empresa jornalística) a descobrir o talento de Cremilda Medina.
A maior parte do tempo Cremilda atuou na editoria de arte do Estadão. Sua proximidade com a arte a fez criar um flanco pedagógico que batizou de Gesto da Arte:
Porque aí se aloja a compreensão sutil de sociedade, aí se afirma a raiz histórico-cultural. Ou seja, o artista, no imaginário que assume sem pejo, traz à tona a expressão dos desejos coletivos. E se o jornalista nele se inspirar, será digno de escrever a saga contemporânea. Em tempos de dura reconstrução da democracia no Brasil, eram os artistas da literatura, do teatro, da música, do cinema, das artes plásticas que assumiam a frente nas manifestações, nos protestos, muitos deles com presença física em Brasília junto aos governos militares.
Com o fim da ditadura, em 1986, Cremilda retorna à universidade e retoma a carreira interrompida pela força bruta. Defende doutorado e livre-docência. Em 1993 é indicada professora titular da Universidade de São Paulo.
Livre do trabalho exaustivo das redações, Cremilda se dedica com afinco à pesquisa e à produção de saberes que resultam em 19 livros de sua autoria e mais de 50 coletâneas.
De 1986 a 1997 atuou na graduação específica de Jornalismo e de 1997 em diante na graduação interdisciplinar, nos laboratórios de narrativas e epistemologia da Comunicação Social.
Em cinco décadas de ensino universitário, Cremilda Medina alcança uma geração de jovens fascinados pela tecnologia. Jovens que amam a internet com sua proposta de substituir no imaginário a rua dos contatos vivos pelas infovias de acesso à distância.
A professora provoca esses jovens ao abrir as portas para alunos da terceira idade. Os novos alunos velhos chegam por meio da UATI. Juntam-se aos novos alunos novos e formam uma só turma, um só projeto. Cremilda orienta e os manda a campo para se unir aos anônimos que, esses sim, constroem a história contemporânea. É a saga do Projeto São Paulo de Perfil que espelha a ação aventurosa para fora dos muros da universidade na busca de quem somos, como vivemos e para onde vamos. Por esse projeto já passaram mais de 500 autores.
Se Érico Veríssimo abriu para Cremilda horizontes com seu elogio (Bá, essa guria escreve como um homem!), Etty Veríssimo abriu para mim uma angélica avenida ao me colocar na sala de estar do casal Medina, uma oficina de letras.
Lembrando meus bons tempos de militância sindical, em um dos nossos encontros levei meia dúzia de panfletos sobre os cursos oferecidos pelo Portal do Envelhecimento por meio do Espaço Longeviver. Distribuí discretamente entre os colegas presentes antes do início da oficina. O panfleto chamou sua atenção.
Posso ver? Entrego a propaganda para a professora e me preparo para uma reprimenda. Lê o panfleto e segue com a oficina. Lá pelas tantas, recupera o libelo. Em voz alta, lê o enunciado de cada curso. Consulta o grupo sobre o tema e sugere adotar algo na linha para o semestre seguinte. Fim de papo. Nenhum puxão de orelha. Nada de ajoelhar no milho ou ficar de castigo olhando para a parede.
Quando estou de saída, o susto. Mário! Pois não, professora. Posso apresentar um trabalho nesse espaço? Sem dúvida. Quando? No começo de junho. Veja as datas e me fale. Claro. Mandarei por e-mail a proposta do curso, combinado?
Chegamos ao arremate final. Na próxima terça-feira, 4 de junho de 2019, teremos a primeira aula do curso Oficina de Narrativas com Cremilda Medina no Espaço Longeviver.
* Texto escrito com base no livro Casas da Viagem de Cremilda de Araújo Medina