Na ponta do lápis

Na ponta do lápis

São os idosos que me mantém viva e que me ajudam neste reencontro comigo mesma. Com o lápis de cor encontramos um certo controle na arte, controle este que nos foge na vida e que é evidenciado pela pandemia.


Caro leitor, peço desculpas pelo sumiço, mas quem acompanha minhas escritas sabe que estou inteira nelas. Ultimamente, desde o começo da pandemia, mal me reconheço tamanha angústia que assola meu peito e foi assim que me perdi de mim mesma. Por sorte pude estar isolada em meio a natureza, ora no litoral, ora nas montanhas e pude então, aos poucos, voltar a me reconhecer, mesmo que bastante modificada o que vem comprovar que o entorno influencia quem somos e as duas mil mortes diárias afetam o sorriso que quando desponta vem amarrado na dor que vive o mundo.

Mas tento reagir e observo com mais atenção as pequenas belezas da vida. Enquanto escrevo avisto as flores amarelas que não temem o calor do verão e florescem bravamente em meio ao sol escaldante deste céu azul imenso, mas cujo vento anuncia uma provável mudança de clima.

Observo as flores amarelas que enfeitam o salão de baile do varal giratório que parece dançar com o edredom ali pendurado e enquanto eles dançam eu escrevo sem saber se irei conseguir chegar ao fim do texto, afinal foram inúmeras as tentativas não findadas. Deixo o vento guiar meus pensamentos que me levam ao que me mantém viva em meio ao caos e com clareza percebo que são os velhos do Centro Dia Bom Retiro e do Faça Memórias (São Paulo) que iluminam este viver sombrio. Se não fossem eles, não conseguiria ter reação e estaria paralisada, exatamente como fiquei no início da pandemia quando vi meus grupos presenciais se dissolverem no medo.

De maneira remota seguimos em frente e para minha surpresa os afetos, tão importantes na minha metodologia, puderam acontecer em meio aos quadradinhos do computador e assim novos grupos foram surgindo e posso então afirmar que a Arte tem sido uma boa ferramenta de inclusão digital para os tantos idosos que se aventuram na internet navegar.

As propostas são pensadas para os grupos sem perder o olhar ao indivíduo.

A tinta flui, a aquarela parece dissolver os males enquanto nos mostra que de nada temos controle, já o lápis de cor é preciso, rígido e perfeito para os controladores de plantão.

Certo dia recebo o telefonema da Terapeuta Ocupacional do centro Dia para me contar que os idosos, muito bem assistidos pela Unibes, receberam em suas casas materiais artísticos e livros de colorir para adultos. Acontece que um dos participantes, bastante ansioso e ocioso pelo isolamento, pintou o livro todo em um dia.

Resolvi então explorar com eles as técnicas de lápis de cor para melhor aproveitar os livros entregues.

Não podia ficar de fora e numa tentativa de me aproximar mais ainda dos velhos do meu bem querer, resolvo adquirir os livros que eles usam e como um jogo, eu e uma das participantes nos conectamos pelo mesmo desenho que combinamos de pintar.

Sim. São os idosos que me mantém viva e que me ajudam neste reencontro comigo mesma.

Com o lápis de cor encontramos um certo controle na arte, controle este que nos foge na vida e que é evidenciado pela pandemia. Juntos descobrimos que em meio a precisão do material podemos soltar a imaginação, explorar claros e escuros, degradês, texturas e tantas outras coisas.

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Candido Portinari tem muito a nos dizer e serviu de inspiração aos idosos do Centro Dia Bom Retiro. Intoxicado pelas tintas ele foi aconselhado pelo médico a fazer uso de outro material que não fosse tóxico e seus trabalhos com o lápis de cor são impressionantes pela genialidade.

Tenho aprendido muito e sei que quando isso tudo passar serei alguém diferente já que a dor nos modifica, mas sei que serei mais forte.

Algumas folhas se soltam da árvore, uma borboleta vem girar ao meu lado e as folhagens rodopiam no compasso da dança do varal.

Estrela late para o vento enquanto Aurora só deseja ser cachorra na preguiça de existir. Agora foi a vez do pássaro piar numa tentativa de cantar para o varal que continua a bailar. Tudo é vento, tudo se movimenta, mas os mosquitos não me deixam em paz. Algo incomoda e não para de incomodar e mesmo que tente não pensar, o descaso com a vida não me deixa esquecer que famílias choram, que idosos se deprimem na solidão, que muitos continuam a não usar máscaras e que eu continuo a me procurar.

O vento se fortalece e o céu azul ganha nuvens, Aurora se deita na espreguiçadeira na beira da piscina para, simplesmente cachorrar por aí enquanto Estrela com seus vestígios humanos, tensa, parece se preocupar com o possível gambá que certamente há de aparecer.

Estar atenta o tempo todo ao perigo nos esgota, não é Estrela?

Pego meu livro de colorir e me conecto em pensamento aos tantos velhos que muito me ensinam. Um traço de lápis é capaz de modificar todo o desenho.

Esqueço a vida e sigo a pintar. Próxima flor usarei o lápis amarelo.


Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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