Fico a imaginar o envelhecimento como uma possibilidade de viajar no tempo e espaço, o que nos permite colocar nossas memórias quando e onde quisermos
Nossa memória nos prende no tempo de hoje. Às vezes gostaríamos de ter o poder de ir à frente do relógio, ou de voltar atrás, nos momentos que assim o quisermos. Mas, o dia de hoje é sempre o definidor de nossas histórias. Até onde lembramos? O que lembramos se passou em que tempo e em que local?
A demência é definida como ausência ou perda constante e progressiva da memória, chegando a comprometer o pensamento, o senso ou a capacidade de se adaptar às ocasiões comuns e/ou sociais. Mais propriamente, a demência é o declínio geral e persistente das habilidades mentais, como linguagem e raciocínio, além da memória, e pode interferir nas atividades normais da pessoa e seus relacionamentos.
No entanto, fico a imaginar o envelhecimento como uma possibilidade de viajar no tempo e no espaço, o que nos permite colocar nossas imagens, memórias de vivências quando e onde quisermos. E isso depende de como conduzimos a comunicação com nossos velhos e velhas. Tenho dois causos a narrar sobre essa versão pessoal e, talvez, intransferível.
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Foto de Brett Jordan/pexels
Jordelina tem 96 anos e viveu, até o seu casamento aos 26, em uma pequena cidade do Vale do Aço, em Minas Gerais. Menos um período de uns três anos, depois da segunda guerra mundial, quando residiu em Belo Horizonte. Ela devia ter uns vinte e poucos anos quando isso aconteceu. Hoje parece que todos os casos que ela conta aconteceram nesse período e no entorno do bairro onde ela residiu, àquela época, ou no bairro onde hoje reside, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ou seja, sua memória recuperada indica que ela consegue viajar no tempo e no espaço, e suas histórias são remontagens de memórias, como uma colagem ou um fuxico de retalhos.
Sempre que a visito provoco-a com perguntas que lhe trazem à mente algumas imagens de sua vida, e ela as conta em uma nova narrativa, antes desconhecida. Como sua imaginação e inteligência são enormes, sempre foram, cada vez que conta um mesmo fato sai um novo roteiro. Em um desses momentos ela contou que estava presente na inauguração do Edifício Acaiaca, conhecido prédio no centro de BH. E que foi convidada a cortar a fita colocada à entrada do prédio.
O famoso Edifício Acaiaca foi inaugurado durante a segunda guerra, anos antes de sua estadia na cidade em fins da década de quarenta e início dos anos cinquenta. Como o edifício é icônico e tem uma arquitetura muito típica da época, e nele havia um cinema muito visitado, não surpreende que faça parte de seu imaginário.
Outra memória de Jordelina ouvida nos últimos tempos, e que estava guardada no fundo do seu baú de lembranças, foi muito indicativa da viagem afetiva nos tempos passados. Segundo ela, esteve presente em programas da rádio Itatiaia, tendo sido convidada para cantar e fez muito sucesso, claro. E que havia um locutor na rádio que se chamava Álvaro Francisco de quem ela gostava muito. Queria que seu primeiro filho tivesse esse nome, o que não aconteceu por causa do ciúme de seu marido, que também se chamava Francisco. O que descobri, depois de tantos anos de escuta, é que naquele tempo e naquele lugar ela viveu os momentos mais felizes de sua vida.
Quando conheci Suzana ela já estava com 80 anos. Visitei-a acompanhado de amigos em comum e ela demonstrou simpatia à minha pessoa. As visitas continuaram, sempre acompanhado dos amigos, até que um dia a presenteei com um livro de poemas, quando ela confessou seu apreço à Poesia e que gostaria que eu aparecesse mais à sua casa para ler para ela. A partir de então passei a visitá-la só, para ouvi-la contar suas histórias e para ler poemas. Um belo dia ela me disse que teve um namorado na juventude que se parecia comigo e que também gostava de Poesia. A sua família, no entanto, não consentia o namoro e a obrigou a se casar com outro homem. Memórias afetivas, sem tempo e sem lugar definidos.
Suzana viveu mais de 100 anos, mas passou os últimos dez em sua cama, depois de uma queda e outros problemas de saúde. Sua memória foi diminuindo a ponto de não se lembrar mais das próprias filhas, mas se lembrava de mim (ou do seu antigo namorado?). O fato é que quando eu me inclinava para beijá-la ela dava um jeito de beijar-me nos lábios, tipo selinho. Em uma das minhas últimas visitas sua filha estava presente e, para sua enorme surpresa e indignação, Suzana disse meu nome.
– Como ela se lembrou de você se não se lembra de mais ninguém há muito tempo?
Minha hipótese, não muito forte, evidentemente, baseada nessas duas personagens, cujos nomes reais omiti neste relato, é que elas guardam por mais tempo histórias vividas ou criadas em momentos e lugares nos quais elas foram felizes, transportando-as para momentos atemporais e lugares meta-espaciais. Lembranças e esquecimentos são estratégias de defesa da mente e do pensamento.
Minha expectativa é que minha última lembrança seja aquela de um tempo e um lugar, não importa qual nem onde, mas de grande felicidade. Quero morrer sorrindo, mesmo se a morte vier acompanhada da dor.
Foto destaque de Suzy Hazelwood/pexels.