O filme “O Milagre” conta a história de uma garota irlandesa que não come desde seu aniversário de 11 anos, que foi… 4 meses atrás, e que diz viver de maná do céu.
“Estou aqui para descobrir a verdade”. (Lib Wright)
Será um milagre de Deus? Como Anna O’Donnel (Kíla Lord Cassidy) sobrevive sem comer? Quatro meses se passaram, e lá está a menina, corada, saudável, aparentemente nenhum sinal de adoecimento. Será que a sobrevivência vem do maná do céu, o alimento ofertado por Deus, que preenche os vazios da jovem? Será uma espécie de penitência, pagamento, expiação de algum suposto pecado?
Diante das dúvidas que inquietam o vilarejo, na busca de respostas, um comitê irlandês decide por chamar uma legítima representante da ciência, a enfermeira inglesa, Lib Wright (Florence Pugh) e uma fiel escudeira de Deus, uma freira.
Objetivo: as duas devem se revezar na tarefa de observar se, de alguma maneira, Anna recebe alimento. “A vigilância deve durar duas semanas, em turnos de oito horas. No décimo quarto dia, o testemunho será dado”.
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Esse é o resumo do que nos aguarda no filme “O Milagre” (2022), adaptação do livro de Emma Donoghue e direção do chileno Sebastián Lelio, impecável também em Gloria Bell (2018), Desobediência (2017) e Uma mulher fantástica (2017).
O cenário é sombrio, lento, o clima é sempre carregado de tensão. O ceticismo de Lib e o fanatismo religioso confrontam com a pureza de Anna, com o enigma que permeia toda história, a determinação regida pela ciência na obtenção da verdade e o clamor da comunidade local e da família pela santidade da menina decidida à privação.
Nesse percurso angustiante, conhecemos Lib, uma mulher e sua história de vida construída nos alicerces da morte, no abandono, na dor da carne, no sangue que escorre e dá prazer. Lá está nossa enfermeira decidida pela verdade, presa à ciência, ao conhecimento e, ao mesmo tempo, aprisionada em um corpo que, hesitante, deseja… inebriante… nas noites perdidas, quentes.
É a fome que não cessa. São as cicatrizes de um passado trazido indiretamente por Anna. Como sobreviver sem o “alimento”?
Anna, com toda simplicidade, acaba por libertar Lib de seu próprio ceticismo. É preciso estar livre, longe da gaiola para compreender os mistérios da vida e de além dela. Assim, resta a enfermeira percorrer as razões que levam a menina a tamanha penitência, a uma culpa que parece pairar em toda privação.
A decisão está tomada: agora ninguém mais terá acesso a Anna, nem mãe, nem pai, nem seus adoradores locais. Com isso, ela definha e, novamente, a ameaça da morte invade a existência da sofrida Lib. Ela sabe que só a menina guarda a resposta sagrada, a origem do alimento.
E, na compreensão do enigma, a descoberta de que a vida, a sobrevivência vem do maná do céu, o alimento ofertado por Deus, o alimento sagrado que impede que todo um povo padeça pela desgraça da fome, da miséria aterrorizante.
Na história de Anna, a privação do maná traz consigo a libertação do fogo do inferno, a garantia da paz aos que um dia ousaram pecar, a ela, a todos nós que nos atrevemos a ultrapassar a linha. Só a morte é capaz de nos redimir.
Morremos como Anna e renascemos como Nanã.
A história me fez lembrar do mito de Nanã. Mãe ou avó, Nanã é uma Orixá presente desde a criação da humanidade. Ela é a memória do povo, pois vivenciou toda a magia da concepção do Universo.
Rainha da lama, da qual se originou todo ser humano, é a representação feminina das mais respeitadas e, também, é uma das mais temidas.
Nanã é responsável pelo portal entre a vida e a morte, pois ela limpa a mente dos espíritos desencarnados para que eles possam se livrar do peso que sofreram em sua jornada, reencarnando sem os rastros da vida anterior. Por isso quando envelhecemos, ao decorrer dos anos começamos a perder nossa memória.
Enfim, vale conhecer a história da menina e sua enfermeira, da luta entre a fé, sua cegueira religiosa e a incredulidade do cético.
O angustiante milagre descreve o desespero e a importante tomada de decisão de Lib diante da verdade aterradora, da mentira assumida e consciente (pior, compartilhada por todos), da morte de uma criança como consequência da omissão e do fanatismo.
O sofrimento de Anna, é inacreditável e violento em sua essência. Não à omissão. Nunca.
Serviço
Assista a “O Milagre”, na Netflix: https://www.netflix.com/watch/81426931