Incontinência urinária: vivendo além do preconceito

Bernadete de Oliveira, fisioterapeuta , professora da Especialização em Gerontologia da PUC – SP e membro fundadora do OLHE – Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento, fala ao Portal do Envelhecimento sobre incontinência urinária, problema que afeta mais de 10 milhões de pessoas no Brasil, caracterizado pela perda involuntária de urina, aliada à incapacidade de controlar o momento e o local de esvaziar a bexiga, podendo prejudicar a autoestima e a autoconfiança no convívio social e sexual.

Fotos Alessandra Anselmi


Portal – Por que a incontinência é tema tão difícil de abordar?

Bernadete – Qualquer tema que lembra a fragilidade humana é difícil de ser abordado, e a incontinência urinária é um dos problemas físicos que revelam diretamente essa fragilidade. Assunto não falado abertamente, e que vem se tornando um tabu, ou seja, o fato de se ter incontinência urinária pode ter um impacto negativo muito maior na vida das pessoas do que poderia ser se houvesse oportunidade de diálogo para desmistificar, buscar melhorias e esclarecer as dúvidas.

Portal – Até mesmo em relação à higiene parece haver preconceitos, não? Como se a pessoa não se cuida.

Bernadete – Sim, parece que se alguém disser que tem incontinência, automaticamente as pessoas vão pensar que cheira mal, não tem uma boa higiene, então se omite para ninguém perceber e não rejeitar por causa disso. Um dos nossos medos é a rejeição. Em alguns casos em pessoas com incontinência urinária a situação se agrava, levando à discriminação e ao isolamento do idoso. Por exemplo, de repente não se convida mais aquele idoso para sair, não se frequenta mais a casa dele, porque a casa cheira mal, e faz pensar: “Não vou lá, não vou comer lá, não vou sentar no sofá que ele senta”. Mas não se sente à vontade para conversar sobre o assunto, tem medo de constranger o outro.

Portal – As pessoas falam mais sobre o tema por ser o assunto envelhecimento e longevidade muito atual, debatido com liberdade e intensidade?

Bernadete – Sim, mas ainda são minoria. Estou falando sobre a velhice que a maioria está vivendo. A maioria da população de idosos que vive a velhice hoje no Brasil envelheceu a duras penas. Se olharmos para essa população com duas lentes, uma de gênero e outra de cultura, veremos mulheres, mães de muitos filhos (multíparas), viúvas, morando sozinhas ou na companhia do filho ou filha. Ao aprofundarmos um pouco mais o olhar (agora clínico), percebemos a presença de alguns problemas físicos, especialmente dor nas articulações (artrose) e alguma doença crônica. Se estivermos com o foco na temática da incontinência urinária já nos perguntamos e buscamos perceber se há algum “sinal de constrangimento” quando alguém ri ou tosse, se quem utiliza fraldas sai de casa, não omite e não sente vergonha.

Penso que o problema do odor, do cheiro de urina na casa pode ser, suspeito eu, porque a fralda usada, molhada, não está sendo desprezada no lixo em uma embalagem que isole o odor, para o cheiro não impregnar o ambiente. Talvez ajude se cada fralda vier com uma embalagem que isole o odor.

Se nos centrarmos naqueles que têm diabetes, evidenciamos que todos sabem que têm que balancear a alimentação, controlar o açúcar no sangue e fazer exercícios físicos. E se aprofundarmos nosso olhar vamos tentar identificar quem percebeu que a visão diminuiu, que já não tem mais a mesma sensibilidade nos pés, que está difícil ver e/ou sentir onde está pisando. A minoria. Esse é outro exemplo, de uma doença muito “falada”, mas que traz incapacidades que são pouco debatidas no nível comum, no eixo onde encontramos a maioria das pessoas que estão vivendo o problema.

Isso é muito desolador porque sabemos que com a incontinência urinária não importa a idade, velho ou adulto, a pessoa pode levar uma vida comum se for bem orientada, informada, para se amparar e se sentir segura. Aliás, qualquer problema físico que temos, não importa a idade, o que incomoda não são os óculos para ler, por exemplo, mas a incapacidade de não conseguir ler sem eles. E essa incapacidade pode se dar de duas maneiras: por não termos óculos ou porque os que temos estão com as lentes inadequadas. Não dá nem para imaginar essa incapacidade. Se olharmos a incontinência urinária dessa mesma forma, talvez o problema não seja apenas ter que usar a fralda.

Portal – Qual seria o problema maior do que ter que usar fraldas?

Bernadete – O problema é alguém saber que você está usando fraldas. Os lesados medulares, por exemplo, que ficam paraplégicos, tetraplégicos, eles não têm o controle do esfíncter, não têm controle urinário. Ou usam a fralda ou fazem esvaziamento da bexiga, e daí eu pergunto: eles não sofrem com isso? Sofrem imensamente, pois existe um estigma muito grande. Imaginemos um jovem de 24 anos, na cadeira de rodas, e ainda tendo que usar fraldas. Então, antes de tudo, isso é uma questão da educação, e um grande sonho que nós que trabalhamos com isso, não sei se vai se realizar um dia, seria levar esse assunto nas escolas, no ensino fundamental, para os jovens, para as crianças. Já conversei muito com idosos que têm incontinência urinária, que reclamam dos netos que zombam deles, e isso por mais que se tente levar na brincadeira, acaba magoando, e na maioria das vezes essa mágoa leva à depressão, ao isolamento. Eles têm a autoestima muito no limite, já ficam assim com bengala, não gostam de usar porque os netos dizem que são velhos, imagina então com o fato de terem que usar fraldas.

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Portal – O que acha que as empresas que lidam diretamente com o tema da incontinência urinária podem fazer para ajudar a diminuir esse tabu?

Bernadete – Provavelmente, o acesso a um produto de boa qualidade e adequado amenizaria a rejeição ao uso, e a dependência se tornaria algo aceitável, pois traria conforto e segurança. A questão da segurança, aliás, é um ponto essencial. Uma fralda que não vasa ou que tem alguns aditivos que informam o momento de troca, como tem a fralda da TENA (Disponível Aqui), por exemplo. Além disso, há modelos diferenciados de produtos adaptados para mulheres, para homens. Dentre os projetos da ONG, um programa vem se destacando, a partir do impacto social proveniente da sua ação, cujo nome “Cuidar é viver” resume a importância da proposta. A TENA é uma empresa parceira do OLHE, e fornece fraldas para as aulas práticas do Curso de Formação de Cuidadores de Idosos desse Programa. Aqui nessa oportunidade sugerimos aos alunos colocarem a fralda e ficar um determinado tempo, seguindo as atividades de rotina, e quando tiver vontade de urinar fazer na fralda – tentem experimentar.

Sabemos que o problema é sentido de forma diferente pelo tipo de pessoa que utiliza a fralda, por exemplo. Se falarmos do idoso independente, aquele que além de usar o produto escolhe o modelo e compra o produto, esse idoso muitas vezes não comunica a ninguém que usa fraldas. Esse é um lado, mas se for falar de idoso dependente, aquele que não tem escolha, que todo mundo sabe que ele usa fralda, esse idoso é totalmente discriminado: “Ah, não vou levar minha mãe porque ela usa fralda e vai ter que trocar a fralda, e aí, como é que vou fazer?”; “estou num lugar público e não tem lugar adaptado para fazer isso”. A questão do lugar público, por exemplo, é outra parte muito delicada. Como vai trocar uma fralda de um adulto num banheiro público? Além de não ter a adaptabilidade do local, é constrangedor fazer isso publicamente. Então as pessoas acabam não tirando o idoso de casa. Mas por outro lado esse idoso necessita do produto. Se dermos a ele acesso a um de qualidade, que oferece conforto e segurança, certamente será uma grande diferença em sua vida.

Portal – E o cuidador de idoso?

Bernadete – O bom cuidador é aquele que visa à autonomia do idoso, que centra na independência, por exemplo. O idoso pode até usar fralda, cadeira de roda, bengala e precisar de um cuidador 24h, mas ele precisa saber que tem autonomia, que pode decidir se quer ou não correr riscos – viver. Por outro lado, para o cuidador de idoso ter uma fralda que solta, que rasga, que vaza, é constrangedor, não só para o idoso, mas para o cuidador também, pois imagina, está lá prestando um serviço e não tem um material de qualidade para que seu serviço seja feito com qualidade. Então, quando as empresas se preocupam em oferecer um produto de qualidade, acho que elas não imaginam o impacto que isso pode ter para o idoso, para a família do idoso e quem cuida dele.

Portal – Você acha que vai chegar o dia em que teremos esse produto de qualidade inquestionável? E aí o idoso superando o tabu, usará a fralda sem se sentir infantilizado e dependente?

Bernadete – Acho que sim, mas isso requer tempo, não adianta querer mudar tudo de uma vez. Mas é fundamental se investir nos caminhos que percorremos até agora. Precisamos trabalhar a educação nas escolas, na mídia, levar a todos as questões do envelhecimento, das dificuldades e das conquistas de uma pessoa idosa que tem um curso de vida, tem uma história, e não é um problema físico que vai mudar essa riqueza de vivência. E como podemos fazer isso sem começar lá na base de formação das pessoas? Somente pela educação se desmistificam os preconceitos. Quando falamos em educação, é em um sentido mais amplo, que engloba, além da escola, a mídia. Para esse assunto, precisamos ao menos dialogar sobre ele, porque às vezes ficamos pensando em alternativas, e há gente aí que já achou o caminho, e poderia conduzir outras pessoas. Por isso acredito que dialogar é muito importante. A mídia tem o poder de estimular o diálogo, a discussão.

Portal – Exatamente o que estamos fazendo agora nesta entrevista, por exemplo?

Bernadete – Exatamente isso.

Contato: Bernadete de Oliveira – Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestre em Gerontologia pela PUCSP, membro fundador do OLHE – Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Disponível Aqui) e fisioterapeuta titulada pela SBGG. E-mail: [email protected]

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