Holanda debate comprimido letal a maiores de 70 anos “cansados de viver”

A medida está prevista entrar na legislação ainda em 2020 e sem ser necessário ter prescrição médica. Fato lembra o caso do cientista holandês, David Goodall, 104 anos, que teve que ir até a Suíça para morrer pacificamente e com dignidade.


Meu sentimento é que uma pessoa velha como eu deveria ter todos os seus direitos como cidadã, incluindo o direito ao suicídio assistido”. (David Goodall,  no último mês de sua vida)

Ao ler a matéria Holanda debate comprimido letal gratuito para maiores de 70 anos ‘cansados de viver’, lembrei-me que há alguns anos recebemos na PUC SP, no Programa de Gerontologia, uma professora de uma universidade da Holanda, coordenadora de uma pós-graduação em Gerontologia Biomédica, que queria entender nosso trabalho voltado para uma perspectiva social e de políticas públicas. Na sua fala estava implícito a hipótese que um dos fatores que levava as pessoas idosas a desejar a morte era a falta de políticas e de rede de apoio social e queria entender como nós trabalhávamos isso no Brasil. Para quem não sabe, na Holanda a eutanásia (ou suicídio assistido) – ato intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável ou dolorosa – é legal desde 2002, mas apenas em situações de doença terminal e de grande sofrimento, e ainda assinada por dois médicos independentes.

Hoje, o governo holandês está debatendo estender essa prescrição a partir da distribuição gratuita de um comprimido letal sem a necessidade de uma ‘receita’ médica a pessoas acima de 70 anos que acham que já cumpriram sua missão aqui na terra ou que sua vida não tem mais sentido e que queiram partir para outra dimensão com muita dignidade. Ou seja, a pessoas ‘cansadas de viver”. Só que aí não seria mais eutanásia, pois as pessoas não precisariam mais do outro para morrer, mas sim suicídio, já que bastaria a pessoa adquirir a pílula e engolir.

Quem nunca pensou nisso? Provavelmente muitos dos que neste momento estão lendo este artigo. Eu mesma venho pensando muito nisso e comecei a pensar sobre este tema quando David Goodall, de 104 anos, cientista mais velho da Austrália, viajou à Suíça para encerrar sua vida, com o apoio de uma associação de defesa do direito à eutanásia. Ele, que vivia sozinho e não sofria de nenhuma doença em fase terminal, percebia que sua vida não tinha mais sentido, especialmente depois de ter sofrido uma queda grave em seu apartamento, ficando dois dias no chão antes de ser socorrido. Para pior a situação, na ocasião ouviu dos médicos que ele precisaria de cuidados 24h por dia ou se mudar para uma casa de repouso onde tivesse esse tipo de atendimento.

Esse acontecimento mais a saída da universidade lhe tiraram o sentido de sua vida, o que em muitas reportagens deixava expresso que estava cansado de viver. Pergunto: Esse não seria um direito? Lembro que em uma das matérias que eu li ele dizia: “Lamento profundamente ter chegado a esta idade… Não sou feliz. Eu quero morrer. Não é particularmente triste. O que é triste é se alguém é impedido”. E exigia seus direitos: “Meu sentimento é que uma pessoa velha como eu deve ter plenos direitos de cidadania, incluindo o direito ao suicídio assistido”. Para ele, “Todos os que desejam devem ter direito a uma morte pacífica e digna”.

David Goodall, na realidade, inaugurou publicamente um debate internacional a respeito da possibilidade de uma finitude programada. Ou seja, que os idosos possam decidir por si mesmos quando e onde desejam morrer. No ano passado a morte assistida foi legalizada para paciente terminal de alguma doença em apenas um Estado australiano após um debate bastante polêmico.

Voltando a David Goodall, ele conseguiu morrer “em paz” na Suíça, mais precisamente na cidade de Basiléia, na clínica Life Cycle (Ciclo da Vida), ajudado por Exit International, grupo defensor da morte assistida. Ele não quis ser velado nem ter um funeral, pediu apenas que seu corpo fosse doado à medicina ou que suas cinzas fossem espalhadas na natureza. Vale lembrar que na Suíça o suicídio assistido está legalizado desde 1942.

O fato é que esse debate continua em alta na Holanda, pois o governo holandês pode colocar em prática esse método de suicídio a partir de um comprimido e para todos que queiram partir após os 70 anos. É o que mostra um estudo realizado no país e divulgado recentemente que aponta a existência de um grupo em perfeitas condições de saúde da população holandesa com 55 anos e mais que “têm um desejo de morrer consistente e ativo”. De acordo com reportagem do jornal ABC, atualmente, com as condições de uso ampliadas, são quase 7.000 as pessoas que todos anos recorrem ao seu uso.

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O jornal assinala que em junho de 2019 o governo holandês lançou uma campanha virtual para incentivar pessoas a pensar sobre o fim das suas vidas, onde são apresentadas instruções sobre os cuidados paliativos que não questionam as vontades que os afetados pelos sintomas de demência  expressam de morrer.

O debate está bem acalorado na Holanda. Deputados da União Cristã, por exemplo, como Carla Dik-Faber, acredita que uma vez que se legalize o suicídio a partir de uma pílula muitos idosos plenamente capazes podem ser incentivados a pensar em sair de cena. Segundo ela, “Os idosos podem se sentir desnecessários em uma sociedade que não valoriza a velhice”.

Imagina se esse debate chegasse aqui no Brasil, quando velhos, jovens, negros, mulheres… que são totalmente desvalorizados o tempo todo e todo o tempo? Certamente, diríamos: por favor, o último a partir apague a luz!

Foto de destaque: burst.shopify.com/


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Beltrina Côrte

Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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