Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor!

Um “sopro” de felicidade mudara a cidade. Tudo estava magicamente tocado com a notícia. O circo vai chegar! Bailarinas, trapezistas e as peças curtas de sedas coloridas, principalmente.

Alcides Freire Melo *

 

hoje-tem-espetaculo-tem-sim-senhorEstas criavam sonhos, fantasias e ódio. Palhaços e mágicos levam as crianças com facilidade à terra dos sonhos da magia, no minúsculo picadeiro.

A cidade mudava de humor. Ouviam-se mais músicas cantaroladas pelas calçadas. Havia um sorriso leve no rosto de cada criança, cada adulto. Desejados bons-dias, logo ao amanhecer, ficaram mais frequentes. Assobios musicais ecoavam na feira, becos e casas. Um “sopro” de felicidade mudara a cidade. Tudo estava magicamente tocado com a notícia. O circo vai chegar! Bailarinas, trapezistas e as peças curtas de sedas coloridas, principalmente. Estas criavam sonhos, fantasias e ódio. Palhaços e mágicos levam as crianças com facilidade à terra dos sonhos da magia, no minúsculo picadeiro.

hoje-tem-espetaculo-tem-sim-senhorO comboio de dois carros subia a serra, em baixa velocidade e calmaria, imposição dos tantos anos rodados. O velho caminhão Ford V8 forçava todas as peças para livrar-se dos buracos da estrada carroçável, na subida da ladeira principalmente. Gemia o motor, penoso, quando enfumaçava os curiosos que corriam para ver o circo passar. Chacoalhava pela necessidade de reparos urgentes, no corpo todo. Por fim, o peso de todo o circo, nem tão pesado assim, aproxima os fracos feixes de mola do limite. Superaquecia o anêmico motor. Calor, poeira e buracos faziam o motorista esquecer-se, quando praguejava a tudo e todos, da carga que levava, a matéria prima para o sorriso.

Na entrada da cidade, com um foguetório próprio, o circo anunciava sua chegada. Cachorros de rua sumiam em disparada, meninos apareciam para o meio da rua e seguiam o comboio. Das janelas brilhavam olhares curiosos, discretos. Decotes graves relaxavam e dividiam com o circo, olhares rápidos, atrevidos e desejosos. Através da fresta da janela azul da casa branca, sombreada de benjamim, vazavam olhares das beatas. As contas dos terços corriam os dedos, rezavam para a imaginação lhes “contar”, em detalhes e segredo, como seria o espetáculo das 20 horas. Provocante! Seriam poucas as roupas; também coladas. Tudo fracamente iluminado por lâmpadas amareladas, com a fraca energia do velho gerador.

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O circo estava no chão. Lonas remendadas, costuradas a mão, seriam a empanada lateral do circo. Para os habitantes dos outros planetas e as estrelas assistirem, ficaram “esquecidos” alguns buracos na lona, um dia vermelha, que há anos, pretensiosamente, conseguia cobrir o teto. Abria permissão extra à lua para dar boas “risadas” quando assistia através do maior buraco, o palhaço “Catimbó” cair, mentir e rir por ser palhaço. Madeiras, ferros e tábuas soltas para fazerem as arquibancadas (poleiros) que balançavam frequentemente, ao ritmo das longas gargalhadas. Seria a materialização de longas andanças.

Uma dezena de cadeiras, também de madeira, cordas divisórias, mais uma placa, seria a matéria prima da tribuna de honra. Regalia destinada somente às autoridades, não as religiosas que consideravam esta arte, no interior do mundo, profana e feitora de pecados. O delegado, talvez por necessidade, representava toda a sociedade por trás dos panos de um circo. Mesmo exposto ao “constrangimento”, precisava defender a pureza de todos os pecados.

No início da tarde, começava a limpeza do terreno. A abertura dos buracos no barro vermelho e seco aumentavam os calos das mãos dos artistas. Os meninos precisavam conhecer de perto o nascimento deste teatro. Conhecerem de perto os artistas e virem nascer aquele “gigante” de madeira e tecido que escondia durante o dia o sorriso, as tintas do palhaço. A magia do ilusionista e o corpo musculoso do gigante Verdugo, sempre pronto para quebrar todos os cabos de aço presos aos braços. Não conseguia a pobreza.

hoje-tem-espetaculo-tem-sim-senhorTrês dias após a chegada, o palhaço estava na rua para anunciar o circo. Sobre enormes pernas de pau, megafone feito de latas, desfilava. Do “alto do mundo”, acompanhado de dezenas de meninos para “gritarem” com o palhaço, em troca de uma entrada para o primeiro dia de espetáculo. “Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor! Seis horas da noite? Tem, sim, senhor… Pipoca, amendoim torrado! Carreguei tua mãe num “carrim” pelada. Iêi!” Os gritos ecoavam por todas as casas, por dentro da igreja e a vazia delegacia. De volta, cada um dos meninos recebia um carimbo, estrela negra, no braço e, por nenhuma circunstância, poderia ser lavado e perder o passaporte de entrada para a estreia.

Sessenta dias depois o circo acorda calmo, finda mais uma temporada. É o amanhecer de uma segunda-feira. Preguiçosamente o Ford começa a receber de volta a alegria enrolada na lona com buracos. Aumenta o vazio da rua. As horas “roubadas”, os sorrisos divididos, os corações “danificados” pelas pernas, roupas coloridas e dança das bailarinas aguardam, agora, outro circo. Houve, ainda, um “gritador de palhaço” a se arriscar atrevidamente durante a despedida, uma pegada na bailarina mais famosa, a filha do dono. Recebeu em troca um bom tapa na cara. “Mesmo assim, valeu a pena” orgulhava-se Ed, numa conversa onde a maioria por tal motivo daria até a outra face.

A poeira provocada pelos ventos secos, fortes e as altas temperaturas do mês de novembro, tapava as marcas deixadas no terreno do circo. Papeis de bombons, palitos de pirulitos de rapadura eram o lixo que ficaria rodando por dias no bairro das Pedrinhas. Um vidro de Nouveau Cologne 4711, vazio, descuidadamente esquecido, perfumou e sensualizou certamente o corpo da trapezista Verônica, filha do Seu Oscar, o velho palhaço. O frasco da 4711 agora seria um amuleto. Talvez modificasse o tempo, faria um ano com duzentos dias, no máximo, até próximo espetáculo.

Catimbó, o palhaço, de dentro do ônibus misto, acenava com sua nova companheira para a cidade. Por tradição, poderia “roubar” moças para seguirem o circo. Diferente, a bailarina mais nova, “filha do dono”, chorava em silêncio, somente com a alma. Para ela não havia permissão de falar de amor fora da empanada.

* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: alcidesfreiremelo@gmail.com. Fotos de divulgação do filme “O Palhaço”, de Selton Mello.

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