Encantada com Geraldo, quem idealizou a Biblioteca do Paiaiá, fiz o convite para que contasse sua história. Segue um pequeno e lindo texto extraído do extenso relato enviado . Mas queremos deixar como convite o pequeno trecho inicial da narrativa, para posterior leitura completa na próxima edição da Revista Longeviver.
O poder do relato biográfico e o espaço de formação que ele abre […] advêm da forma histórica e socialmente construída que o relato permite dar às experiências individuais […] das linguagens partilhadas nas quais ele faz ouvir histórias singulares, da ligação que ele permite manifestar […] e restaurar [e harmonizar] os componentes sócio-históricos da vida individual (MOMBERGER, 2006, pp 369-70) (1).
Conheci Geraldo em setembro de 2018 na cidade de Alagoinhas – BA.
Estávamos entre os muitos convidados ao II Simpósio de Letramento, Identidade e Formação de Educadores no tema: Pesquisa e Formação: percursos de uma práxis pedagógica, realizado no campus II da Universidade Estadual da Bahia, organizado pela professora Aurea Pereira.
Quando ele chegou ao auditório da Universidade foi recebido com muita alegria por todos e, coincidentemente, sentamos lado a lado na abertura do evento.
Uma conversa informal, apresentações de praxe e estabeleceu-se uma simpatia/empatia imediata. Todos os que vinham conversar com ele falavam da biblioteca e eu perguntei: Que biblioteca? Em poucas palavras, num intervalo entre as apresentações, ele me contou a história que, de imediato, achei incrível. E eu, que me acho bem informada, fiquei surpresa de não conhecer. Mais um ‘tapa’ da humildade…
Posteriormente ele relatou ao público na mesa temática – Arquivos, Memórias e Letramentos – da qual também participei, sobre a biblioteca do Paiaiá, fundada em 2003, com recursos próprios e livros amealhados ao longo da vida. Uma história de busca pessoal e realizações, que transbordam de sentidos-significados, na implantação da que é considerada a maior biblioteca comunitária rural do mundo, hoje reconhecida internacionalmente – Biblioteca do Paiaiá – no povoado de São José do Paiaiá, município de Nova Soure, sertão da Bahia, a 250 km de Salvador.
Encantada com Geraldo, e sua trans-formadora trajetória, fiz o convite para que contasse sua história para publicação no Portal do Envelhecimento. Recebemos um lindo e extenso relato, a ser disponibilizado na íntegra na próxima edição da Revista Longeviver, cujo n.2 estará online a partir do início do próximo mês de abril. Mas queremos deixar como convite o pequeno trecho inicial da narrativa, para posterior leitura completa.
As palavras ditas aqui nunca foram ditas antes, mas vêm tangidas pelo realce de uma memória do tempo e do lugar onde nasci e cresci trabalhando na roça. Palavras sobre um tempo que durou vinte anos, sem ter outra perspectiva senão continuar na luta do campo, praticando atividades rurais em estilo ainda bastante arcaico. O menino que vivia descalço andando por dentro do mato, querendo imitar o canto dos passarinhos e catando frutas nativas para serem consumidas na hora do almoço, no final do dia recolhia cabras para o curral e de manhã cedinho buscava água na fonte pra minha mãe preparar a comida, e gostava da natureza que não lhe oferecia nenhuma perspectiva para sair desse tipo de vida. Sonhava ter dinheiro igual ao seu André Bernardes, o homem mais rico do lugar, mas não matando gente como diziam por lá, que ele matou algumas pessoas e se apossou dos seus bens para enriquecer.
Pensando de uma forma utópica em ficar rico não matando ninguém para tomar as suas posses, EU, o menino matuto, de quase 10 anos que nem escola se quer ainda frequentava e nem tampouco sabia escrever meu nome ou fazer uma conta de somar de duas parcelas, imaginava que plantando dinheiro na terra da mesma forma como se plantava milho e feijão poderia enriquecer. Cresci, virei adolescente e homem feito, casei descasei, joguei, investi, desisti/Se há sorte, não sei, nunca vi…(2) nascer as moedas de 01 (um) tostão(3) que havia plantado na goteira da minha casa imaginando que um dia iria nascer uma grande árvore igual a Gameleira mal-assombrada do finado Zé Totó, cheia de vargem com dinheiro dentro. Passaram-se os tempos, viajei pra São Paulo e pelo mundo, trabalhei numa variedade de trabalhos, que antes eu nem sabia que existia, e estou aqui agora registrando esta memória e nada de nascer, florescer e brotar o produto que eu pensava orgulhosamente que um dia iria colher.
Já havia passado por algumas dificuldades, precisaria traçar o meu futuro e não ficar igual a um peregrino iludido e sem rumo esperando essa árvore imaginária vir me socorrer. Mas como diz Augusto dos Anjos: a Esperança não murcha, ela não cansa,/Também como ela não sucumbe a Crença./Vão-se sonhos nas asas da Descrença,/Voltam sonhos nas asas da Esperança(4). E no desejo dos meus sonhos voltarem nas asas da Esperança, porque depois da adolescência a inocência começa perder espaço para a realidade, e aí chegou a hora de raciocinar e decidir o que iria ser e fazer da e na minha vida.
Foi nessa angústia existencial que decidi deixar o Paiaiá no 14/04/1960, mesmo sem ter nenhum plano do que iria fazer/ser no/do meu futuro, mas mantendo a esperança e a vontade de viver num lugar onde eu pudesse trabalhar estudar e me formar em alguma profissão, de preferência em medicina.
Entretanto, isso era o que passava pela cabeça de um pobre menino tabaréu, analfabeto aos 10 anos de idade e morando na roça igual um “bicho do mato”, e se nem se quer tendo mais a minha vô materna para de noite contar histórias sobre a sua vida de menina moça e depois mãe solteira naquela época ainda de escravidão (segunda metade do século XIX), e cantar para eu dormir, pois, para a minha tristeza, quando eu estava completando os meus oito anos de idade ela foi colocada num caixão forrado com pano preto – que simbolizava caixão de viúva, embora ela fosse mãe solteira – transportado num carro de boi para ser sepultada num cemitério bem longe de onde nós morávamos – o cemitério velho de Nova Soure reformado pela Antônio Conselheiro – e que hoje em dia também não existe mais.
Naquela idade sonhava eu em ser doutor, porque invejava o médico Dr. Luís Passos chegar de Salvador com a sua família – D. Judite, Raulzinho e Maria Amélia – na sua caminhonete Rural Willys para passar férias na sua fazenda que ficava próxima à nossa roça. Às vezes, ele levava a família lá em casa pra tomar um cafezinho e entregar algumas amostras grátis de remédios que a gente não fazia a mínima ideia para que servia. Eu achava muito bonita aquela roupa branca, e me enchia de curiosidade aquela grande e mágica medalha pendurada no pescoço com grosso e misterioso colar que o Dr. Luís punha sobre o coração das pessoas e dizia algumas coisas que ninguém sabia o que significava.
Ingenuamente perguntei pro meu pai se ele não poderia me fazer doutor, mas, carrancudo como era, me repreendeu e a minha mãe repetiu o que ele disse – que ser doutor era só para ricos, aquele meu sonho de querer ser doutor era coisa de gente besta, pois o doutor que o pobre é mesmo, é doutor pé de cama, é doutor urinol. Mas como diz Manuel de Barros “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas” (5), como a minha que está sendo um pouco retratada aqui.
Notas
(1) Momberger-Delory, Christine. “Formação e Socialização: os ateliês biográficos de projeto”. Revista da Faculdade de Educação – USP. São Paulo, vol.32 /02, 2006, p.359-371.
(2) Música Romaria, de Renato Teixeira.
(3)Ver http://www.moedasdobrasil.com.br/moedas/tostao.asp. Acessado em 13/12/18.
(4)Anjos, Augusto. Eu e outras poesias. Porto Alegre: LPM, 2010.
(5)Barros, Manuel de. Livro sobre NADA. São Paulo: Ed. Record 1996, p. 69.