Foi divulgado em 30/08/2012: “A Resolução 1.995, do Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelece os critérios para que qualquer pessoa – desde que maior de idade e plenamente consciente – possa definir junto ao seu médico quais os limites de terapêuticos na fase terminal”.
Luciana H. Mussi
Assim, finalmente, é concedida a voz e a vez para aquele que sofre, ou seja, devolvemos ao paciente a decisão de decidir como quer viver seus últimos dias.
Ainda segundo a resolução: “Pacientes e médicos contarão, a partir de 31/08/2012, com regras que estabelecerão os critérios sobre o uso de tratamentos considerados invasivos ou dolorosos em casos clínicos nos quais não exista qualquer possibilidade de recuperação. Sob o nome formal de ‘diretiva antecipada de vontade’, mas já conhecido como ‘testamento vital’, trata-se do registro do desejo expresso do paciente em documento, o que permitirá que a equipe que o atende tenha o suporte legal e ético para cumprir essa orientação”.
Para o presidente do CFM, Roberto Luiz d’Avila, a diretiva antecipada de vontade é um avanço na relação médico-paciente. Segundo ele, esse procedimento está diretamente relacionado à possibilidade da ortotanásia (morte sem sofrimento), prática validada pelo CFM na Resolução 1.805/2006, cujo questionamento sobre sua legalidade foi julgado improcedente pela Justiça.
A existência dessa possibilidade não configura eutanásia, palavra que define a abreviação da vida ou morte por vontade do próprio doente, pois é crime. “Com a diretiva antecipada de vontade, o médico atenderá ao desejo de seu paciente. Será respeitada sua vontade em situações com que o emprego de meios artificiais, desproporcionais, fúteis e inúteis, para o prolongamento da vida, não se justifica eticamente, no entanto, isso deve acontecer sempre dentro de um contexto de terminalidade da vida”, ressaltou.
O olhar da mídia
Após a divulgação da notícia pelo CFM, jornais e revistas fizeram seus comentários sobre os avanços há tanto desejados pela população e profissionais da área da saúde. Um dos escritos que chama a atenção, não só pela clareza, mas também pela crítica imposta é de Eliana Brum, Revista Época, “Você quer ser pessoa ou paciente?”.
Explicando o espírito da resolução, Brum diz: “A ideia é respeitar o tempo de morrer e usar o conhecimento científico e também de outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o fim”.
Mal qual a medida de tudo isso? Como saber o tempo de morrer, se, muitas vezes, mal sabemos como viver?
A jornalista continua sua argumentação afirmando que “não haveria terror maior na vida real do que morrer numa UTI, amarrada a fios, entubada e sozinha. Não mais uma mulher, uma vida em curso, mas um objeto de intervenção médica”.
Parece que a necessidade dos cuidados médicos em momentos cruciais, torna-se, cada vez mais, algo assustador, o que necessariamente nos faz “objeto” nas mãos frias da ciência. Será que nosso olhar não está duro demais com esses profissionais? Indivíduos formados nas cadeiras escolares para priorizar a vida? Será que essas mesmas pessoas estão preparadas para essa nova forma de praticar a medicina diante do inevitável? Tudo leva a crer que o problema é mais complexo.
É o que mostra também a revista Veja, edição 2286, de 12 de setembro, que trouxe como manchete de capa a seguinte frase: “Eu decido meu fim”, tendo como subtítulo, “Agora que os médicos brasileiros são orientados a reconhecer a vontade dos pacientes terminais, a decisão de interromper os tratamentos torna-se menos dolorosa? E ainda, em uma letra menor, outro título: Teste, com a seguinte pergunta: você está preparado para fazer seu testamento vital?”
A reportagem começa com um pequeno trecho de um testamento vital de uma mulher de 44 anos, hoje cheia de entusiasmo e plenamente saudável, chamada Ana Cláudia Arantes, geriatra e especializada em cuidados paliativos, uma das poucas médicas no país a propor o testamento vital a seus pacientes.
Eis o trecho do testamento, publicado na revista Veja: “Eu, Ana Claudia Arantes, diante de uma situação de doença grave em progressão e fora de possibilidade de reversão, apresento minhas diretrizes antecipadas de cuidados à vida. Se chegar a padecer de alguma enfermidade manifestamente incurável, que me cause sofrimento ou me torne incapaz para uma vida racional e autônoma, faço constar, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da da vontade, que aceito a terminalidade da vida e repudio qualquer intervenção extraordinária, inútil ou fútil. Ou seja, qualquer ação médica pela qual os benefícios sejam nulos ou demasiadamente pequenos e não superem os seus potenciais malefícios. As diretrizes incluem os seguintes cuidados: admito ir para a UTI somente se tiver alguma chance de sair em menos de uma semana; não aceito que me alimentem à força. Se não puder demonstrar vontade de comer, recuso qualquer procedimento de suporte à alimentação; não quero ser reanimada no caso de parada respiratória ou cardíaca”.
O direito de não sofrer
Em uma crônica de Waldir Bíscaro, publicada recentemente aqui no Portal, este tema veio à tona, após um colega seu ter lido e traduzido o livro de Umberto Veronesi sobre o “direito de não sofrer”. Waldir propõe três formas do tema ser colocado:
a – Tem o cidadão o direito de decidir sobre os cuidados que serão empregados em sua fase final?
b – Poderia ele estabelecer antecipadamente a dispensa de cuidados artificiais para o prolongamento da vida, caso ocorresse perda total de sua capacidade de decidir e de se comunicar?
c – Poderia o cidadão determinar de forma consciente sua rejeição antecipada à mera extensão de uma vida apenas vegetativa?
Segundo Waldir Bíscaro, todos esses problemas poderiam ser resumidos em um conceito: O direito que todo cidadão teria de, previamente, definir as condições para morrer com dignidade e sem sofrimentos.
Ele lembra que em alguns países europeus a forma que o cidadão tem para expressar antecipadamente esse desejo, de modo a garantir seu cumprimento e contra a “obstinação terapêutica”, recebe vários nomes: Testamento Biológico; Testamento Vital; Living Will; Testamento em Vida; Vontade Prévia de Tratamento; Declaração Antecipada de Tratamento.
O olhar acadêmico
Trata-se de um problema cada vez mais presente em nosso entorno e que, inclusive, foi tema de pesquisa de mestrado da psicóloga Debora Cristina Genezini Costa, defendida em dezembro de 2011 na PUC-SP, sob a orientação da profa. Dra. Ruth G. da Costa Lopes. Sua pesquisa, intitulada “Cuidados na velhice, no adoecimento e na morte: relatos e reflexões sobre a finitude como forma de investimento na vida”, retratou “alguns recortes da visão de velhice e morte dentro de novos paradigmas contra e a favor do cuidado ao velho no adoecimento e no final da vida. Documentos e notícias veiculados na mídia, o cinema e teóricos foram alguns interlocutores. Da mesma forma, as vozes demarcadas nos relatos de idosos, familiares e profissionais de saúde trouxeram reflexões sobre os modos de olhar, planejar e cuidar da velhice. A Gerontologia, o Cuidado Paliativo e a proposta do Testamento Vital foram apresentados como possíveis agentes facilitadores do planejamento e da assistência ao velho adoecido”.
Para Debora, não há dúvida, “A assistência em saúde ainda como reflexo do tecnicismo e do biopoder visa à cura e à manutenção da vida a partir do uso abusivo de recursos tecnológicos.
Em breve trataremos com mais profundidade este tema em nossa Revista Portal, aguarde!
Referências
BRUM, E. (2012). Você quer ser pessoa ou paciente?. Disponível Aqui. Acesso em 04/09/2012.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (2012). Pacientes poderão registrar em prontuário a quais procedimentos querem ser submetidos no fim da vida. Acesse Aqui. Acesso em 04/09/2012.
GENEZINI COSTA, D. C. Cuidados na velhice, no adoecimento e na morte: relatos e reflexões sobre a finitude como forma de investimento na vida. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
LOPES, A.D. e CUMINALE, N. O direito de escolher. Revista Veja, edição 2286, ano 45, n.37, de 12 de setembro de 2012.