Faça Memórias: a arte de (re)criar com amor

Faça Memórias: a arte de (re)criar com amor

Ainda que as vivências do envelhecimento sejam um tanto generalizadas pela sociedade, as singularidades de cada idoso insistem em se expressar no programa Faça Memórias.

Luisa Parolin e Marina Pereira (*)


Focado na saúde dos idosos, o programa Faça Memórias tem como objetivo proporcionar o conhecimento, aprendizado e engrandecimento através da arte, tendo como lema Arte e vida lado a lado. Devido à pandemia, os encontros, antes remotos e presenciais, estão acontecendo exclusivamente pela plataforma Zoom, com 1 hora de duração, das 15:50 às 16:50, às segundas-feiras. Tivemos a oportunidade de acompanhar o grupo(1) composto por Margarida, Rosa e Lírio. Camélia, a arteterapeuta do grupo, conduzia as atividades, propondo uma apresentação sobre o tema a ser trabalhado, seguida da produção artística, que era possibilitada através de um kit fornecido pelo programa a cada um dos participantes.

Após observarmos como cada participante se inseriu de forma diferente nas atividades desenvolvidas, ficou evidente que, apesar de ser um fenômeno comum entre eles, a velhice não eliminava a individualidade de cada um e a forma única com que lidavam com as angústias específicas dessa fase da vida. Nesse sentido, nota-se que, ainda que as vivências do envelhecimento sejam um tanto generalizadas pela sociedade, as singularidades de cada idoso insistem em se expressar. Algo semelhante ocorre com o fenômeno da loucura, muito tempo entendida como sinônimo da integralidade dos seres humanos acometidos por ela, de modo que a multiplicidade de aspectos constituintes do sujeito era reduzida a uma só condição. Durante o documentário Em nome da Razão, a visão de Franco Basaglia é lembrada em uma cena na qual muitos pacientes estão imóveis, deitados no chão do Hospital Colônia de Barbacena. Pode-se perceber, nesse sentido, que o ócio se torna extremamente prejudicial para a recuperação de qualquer paciente acometido pela angústia, além de poder até contribuir para que a loucura se estabeleça de vez. De maneira semelhante, é preciso cuidar para que a condição da velhice não esteja associada ou reduzida à inatividade.

As sessões de arteterapia, nesse sentido, evidenciaram a importância da atividade na rotina dos idosos, visto que são pessoas comumente associadas a serem demasiadamente lentas, em uma sociedade utilitarista e focada na produção econômica. Esses mesmos idosos acabam tendo sua saúde mental bastante comprometida por preconceitos e tabus que, de fato, se concretizam mais tarde com o total abandono de suas individualidades, habilidades, memórias e vivências múltiplas. Por isso, a proposta de um projeto que busque não somente estimular essa população, mas também constituir um espaço de escuta e troca entre os participantes se mostrou fundamental. É por meio desses espaços que se torna possível o movimento de resgate de momentos vividos, desfrutando do momento atual de forma a criar novas memórias. A construção de tal espaço, porém, não ocorre sem alguns impasses, que buscaremos relatar, sem deixar de destacar também os inestimáveis benefícios contidos nesse processo.

Para o acontecimento do grupo, a presença dos cuidadores mostrou-se fundamental. A tecnologia ainda representava uma dificuldade para os participantes, mas, com o auxílio de seus cuidadores, puderam ter acesso aos encontros. Rosa estava sempre acompanhada de sua filha, Azaleia, enquanto Margarida contava com o apoio de sua filha Lavanda ou das cuidadoras, Flor e Íris. Já Lírio, recebia ajuda de sua vizinha, Magnólia, mas, de maneira diferente das outras participantes, ela não o acompanhava ao longo da aula, permanecendo apenas para ajudá-lo a ingressar na chamada. Diante do papel essencial ocupado pelos cuidadores, algumas situações emergiram, evidenciando que essa função não é restrita apenas ao aspecto operacional: os cuidadores têm também participação ativa e inegável no processo de resgate das memórias e reconstrução das identidades.

Ao longo dos encontros, pudemos notar que a presença dos cuidadores implicava, frequentemente, em interferências nas produções dos idosos. Pinte dessa outra cor. Comece por aqui. Carregue o pincel com mais tinta. Não foram raros comentários desta ordem. O Faça Memórias opera de maneira muito bonita no sentido da promoção da autonomia e resgate à autoconfiança, através da arte. Para tal, no entanto, percebemos que também é necessário cuidar de quem cuida. É preciso que os cuidadores sejam incluídos no processo e que ocupem um lugar nessa dinâmica, mas deve-se trabalhar esse aspecto de modo a evitar interferências na autonomia dos idosos. As preocupações e angústias acerca de quem amamos pode fazer com que nos antecipemos para prevenir frustrações, decepções, dores e erros. Essa conduta nos faz lembrar o fenômeno da parentalidade helicóptero (Howe & Strauss, 2003), marcada pelos altos níveis de envolvimento, proteção, controle e atenção em relação aos filhos (Rainey, 2006). Uma pesquisa realizada pela American Psychological Association (2018) apontou que esse comportamento por parte dos pais pode causar prejuízos a seus filhos, que podem apresentar dificuldades para lidar com as demandas desafiadoras, parte de seu desenvolvimento e crescimento pessoais. De maneira semelhante, o envelhecimento dos pais parece despertar nos filhos uma espécie de filiação helicóptero. Ainda que, por vezes, sejam conscientes dos prejuízos que essa conduta pode ocasionar a seus pais, parece ser um desafio enorme abandonar certas posturas superprotetoras, que surgem instintivamente.

O afeto que parece inspirar essa superproteção, no entanto, também parece ser fonte para o maior dos zelos que os cuidadores oferecem: a ajuda para recordar. Durante os encontros pudemos presenciar os participantes esquecendo-se de perdas de entes queridos, mudanças de casas e animais de estimação. Amorosa e pacientemente, esses fatos eram relembrados pelos acompanhantes. É nesse espaço que fica evidente a importância dos cuidadores. As memórias afloram, cheias de detalhes e de carinho, e os participantes passam a revisitar acontecimentos, pessoas e lugares, nesse movimento de interiorização. Nos soa bonito pensar na velhice como uma vivência e um olhar intenso e apropriado de si mesmo e de sua própria história e trajetória. Nesse sentido, a presença de cuidadores amorosos, que contribuam para os resgates necessários, faz-se indispensável quando o peso da idade já recai sobre a memória.

Horizontes pintados por Lírio

Após destacarmos a importância dos cuidadores para engajar os participantes no grupo, nos atentamos aos desafios e benefícios da atividade grupal em si. Pensamos no grupo como um espaço de construção conjunta, ou seja, um contexto no qual Camélia, a arteterapeuta, buscou aproximar-se da inclusão simbólica de cada participante. Na reunião em que o assunto da semana girou em torno dos cômodos das casas e a atividade foi pintar uma casa de madeira, por exemplo, notamos a importância das atitudes de Camélia. A arteterapeuta enfatizava a quem estava direcionando as perguntas antes de fazê-las, conduta que se mostrou positiva, motivando respostas dos participantes. A atividade de falar sobre o espaço da casa de cada um foi interessante, visto que esse é o local com o qual eles têm maior contato durante a pandemia, podendo elaborar os impactos decorrentes disso ao abordarem o assunto. Em adição, também foram notados esforços de Camélia para enfatizar as vivências e momentos bons em casa. Ao mostrar cômodos, nas imagens do computador, deu significado aos espaços, a partir do que era feito em cada lugar. Outro fator que se mostrou importante foi a fala da arteterapeuta acerca de seu próprio quarto, abrindo espaço de compartilhamento e identificação com o grupo, de modo que puderam perguntar sobre sua vivência desses espaços na pandemia. Por fim, buscou ressaltar, durante as instruções, que o modelo que haviam construído não era uma regra, sendo possível mudá-lo. De acordo com Camélia, a arte é um espaço de liberdade e isso motiva a auto expressão dos participantes, de acordo com o momento em que estão para criarem seus próprios estilos na atividade.

Uma inclusão efetiva pode ser descrita a partir do momento em que atinge o nível simbólico e cultural, ultrapassando apenas a integração física de diferenças no mesmo espaço. Segundo Mena (2000), a partir do momento em que isso ocorre, o indivíduo pode participar das produções do grupo e da cultura, na medida em que está incluído nas tarefas e dinâmicas do próprio ambiente. Com isso, a importância da subjetividade é colocada em pauta, pois a equanimidade depende do reconhecimento da diferença e remanejo do grupo a partir dessa, visto que o processo ocorre por meio da consideração dos desejos, vontades e contribuições do sujeito. A inclusão efetiva em instituições, nesse sentido, possibilita construções psíquicas naqueles que entram em contato com esses ambientes. Assim, aos poucos, pode-se produzir mudanças socioculturais acerca da significação atribuída às diferenças e à experiência de ser uma pessoa idosa. Ao longo dos encontros do Faça Memórias, nosso próprio olhar frente ao fenômeno da velhice mudou.

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Após uma aula que visava falar sobre o amor e como era retratado nas obras de arte, sentimos uma grande identificação com todos os participantes. Com as histórias sobre amigos, amores e família, sentimos que a idade não determina visões diferentes ou que não possam ter semelhanças com outras faixas etárias. O ser-no-mundo de cada um foi revelado, já que as diferentes visões de mundo pensadas nessa linha não dependem intrinsecamente da idade, mas da singularidade de cada um. Assim, não se limitam a interações intergeracionais, uma vez que ocorrem em todas as interações humanas. Nesse caso acreditamos que o impacto que sentimos, juntamente com um maior conforto estando dentro do grupo, foi pelo fato de uma pré-concepção que tínhamos a respeito dos idosos ter sido quebrada ou suspensa. Antes, sentíamos que devíamos respeitá-los porque, pelo fato de terem vivido mais tempo e em outro contexto político-histórico, não poderiam se sentir ou pensar como nós. Isso mudou ao longo das falas, já que escutamos diversos sentimentos e dúvidas que nós mesmas apresentávamos a respeito do fenômeno do amor. Afinal, não interessa a idade: não há como chegar a uma conclusão final sobre as coisas porque a velhice não é o fim, mas outro ciclo do processo da vida que, mesmo que abarque mais vivências e especificidades próprias, ainda permite dúvidas e a transformação pessoal.

Diante disso, a partir dos encontros, duas questões essenciais saltaram aos nossos olhos: os efeitos do tabu acerca do envelhecimento e a importância desse projeto – e de outros do gênero – com o objetivo de reconstruir a identidade dos participantes. Para essa última tarefa, o Faça Memórias trabalha através do resgate de suas memórias.O projeto é muito fiel às expressões livres, destacando que essas devem ser exaltadas, pois contam de um ser com todas as suas potencialidades. É a minha inspiração, então estou gostando. Essa frase de Margarida, dita em um dos encontros, ilustra perfeitamente a ação do projeto. É uma fala que nos faz lembrar sobre um amor de outra ordem, intrinsecamente ligado à individualidade resgatada: o amor-próprio.

É justamente em projetos como esse que se promove uma mudança não só na visão acerca da velhice, mas também na própria vivência do idoso, independente de suas limitações orgânicas. Pensamos existir uma tendência geral a olhar, com pesar, a velhice como uma contraposição entre o tempo vivido x tempo a viver. Parece pairar um conceito de que o velho só ama aquilo que já passou ou já construiu. Mas observando o Faça Memórias, torna-se evidente que o amor é sempre uma novidade. É possível descobrir e reinventar formas de amar. A nós mesmos e aos outros. E como sabiamente disse Margarida:

Então vamos amar! Enquanto a gente não ama, a gente não pinta.

Nota
(1) Os nomes foram alterados visando garantir a privacidade dos participantes.

Referências
YOUTUBE. Em nome da razão. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cvjyjwI4G9c. Acesso em: 23 jun. 2021.
MENA, L. Inclusões e inclusões: A inclusão simbólica. Psicologia Profissão e Ciência, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 30-39, 2000.
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Helicopter parenting may negatively affect children’s emotional well-being, behavior. 2018. Disponível em: <http://www.apa.org/news/press/releases/2018/06/helicopter-parenting>. Acesso em: 26 jun. 2021.
RAINEY, A. Survey provides further evidence of high parental involvement with college students. 2006. Disponível em: <https://www.chronicle.com/article/survey-provides-further-evidence-of-high-parental-involvement-with-college-students-3916/>. Acesso em: 26 jun. 2021.
HOWE, N., & STRAUSS, W. Millennials go to college. Washington, DC: American Association of Collegiate Registrars and Admissions Officers (AACRAO) and Life Course Associates. 2003.

(*) Luisa Parolin e Marina Pereira – Alunas do Estágio Básico I, 5º semestre,  do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, da PUC-SP, sob a supervisão da professora Ruth Gelehrter da Costa Lopes. E-mails: [email protected] e [email protected]

Foto de Steve Johnson no Pexels


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