É o que o crítico literário e filósofo Antonio Cicero diz em carta de despedida.
A recente divulgação da carta de despedida de Antonio Cicero Correia Lima (1945-2024) – escritor e compositor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) -, escrita antes de sua morte assistida na Suíça, reacende um debate fundamental e profundamente humano: a dignidade do fim da vida. A escolha de Cicero, em meio a uma batalha contra uma doença incurável, como Alzheimer, de buscar o direito de finalizar sua jornada da maneira que considerava mais digna, coloca em evidência a complexidade e a importância de se discutir no Brasil a dignidade do fim da vida.
Antes de tudo, vamos à Carta de Antonio Cicero:
CONFIRA TAMBÉM:
“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”
A dignidade do adeus
Antonio Cicero, carioca, 79 anos, se submeteu a um procedimento de morte assistida, na Suíça, onde faleceu no dia 23 de outubro. Sua carta, carregada de lucidez e serenidade, demonstra a busca por uma despedida consciente, livre de sofrimento e digna. É um testamento da autonomia individual, do direito de decidir sobre o próprio corpo e destino, mesmo em momentos de fragilidade e extrema vulnerabilidade. Através de suas palavras, Cicero nos convida a refletir sobre o valor da vida, não apenas em sua duração, mas também em sua qualidade, inclusive da morte.
A decisão de buscar a morte assistida revela a necessidade de se reconhecer a individualidade da experiência humana e o direito de cada um de definir seus próprios limites.
Em uma sociedade que frequentemente se esforça para prolongar a vida a qualquer custo – como vem combatendo o crítico cinematográfico, cineasta e escritor, Jean-Claude Bernardet, especialmente por meio de seu livro O Corpo Crítico, onde narra sua saga contra o sistema médico-hospitalar – a carta de Cicero nos lembra que a verdadeira compaixão reside em respeitar a vontade do indivíduo, mesmo quando esta se manifesta no desejo de interromper o ciclo da vida em condições dignas.
É preciso, no entanto, reconhecer que no Brasil, a discussão sobre o fim da vida é permeada por questões de desigualdade social, éticas e religiosas complexas. A crença na sacralidade da vida e a importância da preservação da mesma são valores profundamente arraigados em muitas culturas e crenças. É crucial, portanto, que o debate sobre a dignidade do fim da vida seja conduzido com sensibilidade, respeito e amplo conhecimento das diferentes perspectivas, sem nunca perder de vista a centralidade da dignidade humana.
Os franceses, além de manifestações contra a reforma da previdência ocorridas em 2023, mostraram grande preocupação com a qualidade do fim da vida, a ponto de realizarem uma convenção cidadã para discutir a questão, e contarem com uma assistência ativa à morte, sob condições dignas. Eles escutaram vários especialistas, franceses e internacionais, em diferentes domínios – jurídico, médico, religioso, filosófico -, para deliberar, debater e votar propostas, sempre com o objetivo de preservar as nuances das opiniões, em torno deste complexo tema, que é pessoal e coletivo ao mesmo tempo.

Post de Marina Lima, irmã de Antonio Cicero, postado em seu Insta
A carta de Antonio Cicero, além de ser um documento pessoal, assume um caráter público e transformador. Ela abre espaço para um diálogo maduro e necessário sobre a finitude da vida, desafiando-nos a repensar nossos valores e a forma como encaramos a morte. Ao buscar uma morte digna, Cicero nos presenteia com um legado de coragem e reflexão, que nos impulsiona a construir uma sociedade mais justa e compassiva, capaz de acolher a individualidade e a autonomia de cada um, inclusive em seus momentos finais.
É importante ressaltar que este texto tem caráter informativo e reflexivo, não se posicionando a favor ou contra a morte assistida, mas sim à dignidade humana, e a necessidade de se colocar em pauta, urgentemente, os cuidados paliativos e as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), documento que permite a uma pessoa expressar as suas preferências e desejos em relação aos cuidados médicos que deseja receber caso se torne incapaz de tomar decisões autônomas. Além, é claro, de temas mais “espinhosos”, como suicídio assistido, eutanásia, ortotanásia e distanásia.
Temas que compõem um “território árido” que, nós, estudiosos e ativistas do envelhecimento, deveríamos percorrê-lo a fim de preparar a qualidade e dignidade da vida, mas também a qualidade e dignidade no suporte ao fim da vida.
Foto: divulgação
