Envelhecimento humanizado: responsabilidade do SUS e SUAS, a importância de um trabalho híbrido

Envelhecimento humanizado: responsabilidade do SUS e SUAS, a importância de um trabalho híbrido

Para atender a necessidade do sujeito em sua integralidade é de extrema necessidade que o Estado execute suas funções com o SUS e o SUAS, caminhando juntos para a garantia de direitos na vida de todos os usuários, sobretudo os idosos.

Daniele Cristine Rodrigues Faria Calcanhoto (*)


Essa reflexão nasce de inquietações desta profissional que desde 2016 atua no Centro Dia do Idoso do município de Taubaté (SP) e convive com o fenômeno do envelhecimento em suas diversas singularidades. Nesses cinco anos como trabalhadora da Assistência Social ficou evidente para mim que os idosos não envelhecem da mesma maneira. Pude constatar, a partir da minha experiência empírica, de estudos e muitas reflexões, corroborando com o que expõe Bestetti (2021), que o envelhecimento também está atrelado às condições [sociais e econômicas]de cada indivíduo ao longo da sua vida. Segundo Júnior (2019, et al.),

a vulnerabilidade social é multidimensional, pois afeta de diferentes formas e intensidade os indivíduos. A vulnerabilidade social reflete o entorno sociocultural do indivíduo e denota ausência ou dificuldade de apoio de instituições, o que dificulta o exercício dos direitos sociais de cada cidadão, afetando a capacidade de reagir a situações adversas. Portanto, em contextos de alta vulnerabilidade social, é maior o risco de adoecimento e prejuízo à qualidade de vida e ao bem-estar dos idosos.(2019, p. 3048)

Entende-se, assim, que, de modo geral, quanto mais desigual econômica e socialmente é a vida da pessoa idosa e quanto menos acesso ele tem aos equipamentos públicos, tanto mais desafiador se tornará a manutenção de uma vida digna. A primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, geradora da ‘’Carta de Ottawa’’ (1986) já manifestava em seu conteúdo a preocupação com a saúde sob o viés social. Reafirmando a importância de considerar a condição econômica e social nesta análise, pode-se citar também a prática da mistanásia, que diz respeito ao descaso do Estado à pessoas que, apesar de terem doenças tratáveis, são negligenciadas em suas dores e não conseguem acesso a recursos hospitalares devido à desigualdade social.

Ao contrário da eutanásia que sugere o abreviamento do sofrimento na morte, a pessoas com doença cuja possibilidade de tratamento já foram esgotadas, na mistanásia a “morte prematura [vem] decorrente de uma ação ou omissão humana e/ou estatal, como maus tratos, abandono ou violência”. Trazendo a reflexão aos dias atuais, é fato que com a pandemia de Covid-19 que assola o país desde 2020, aumentou e muito o número de idosos vulnerados, escancarando a desigualdade social vivenciada pelas famílias e a consequente negligência no cuidado com os idosos, aumentando significativamente a procura por Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs).

O Centro Dia na pandemia e as intervenções

Reconhecendo o cenário exposto, a equipe do Centro Dia – hoje coordenada por mim, redefiniu o Plano de Trabalho, adaptou as intervenções, respeitando o distanciamento físico (mas sem isolamento) e não mediu esforços para que a efetivação desta política pública não fosse prejudicada nem interrompida. Para tanto, montamos um grupo de WhatsApp com os idosos e seus familiares com o intuito de manter contato e para envio de vídeos de atividades física, canto coral, oficinas manuais, atividades de estímulo cognitivo e dança.

Essas atividades são disponibilizadas diariamente e nos mesmos horários que aconteciam no espaço presencial, fator que contribui com a manutenção da rotina do idoso. Já as atividades socioculturais ocorrem em vários formatos: na festa junina deste ano, por exemplo, houve entrega de comidas típicas numa atividade denominada “Festa Junina na Caixa” em que o cuidado afetivo já começa com a personalização da própria caixa pelas mãos da oficineira do equipamento. E para receber sua caixa, o idoso foi recepcionado num Drive Thru (montado dentro da instituição) por todas as funcionárias vestidas de caipirinha, ao som da sua música caipira favorita interpretada ao vivo por um cantor. Uma música diferente para cada idoso, atenção que o recorda quão únicos são. O esquema de Drive Thru também foi usado como estratégia na festa de Natal e também no Dia Internacional da Mulher, cada qual portando um cenário e/ou interações que remetessem àquela data. Vale ressaltar ainda que houve atenção com relação aos idosos e famílias que não possuíam carro para participar dos eventos; deixamos o motorista do equipamento à disposição de tais famílias, por entender que o trabalho executado no serviço deve ser humanizado e inclusivo.

Em relação à alimentação, o almoço que era servido dentro do equipamento todos os dias, agora chega na casa de cada idoso, também de segunda à sexta, e atende tanto ele quanto seu cuidador ou acompanhante pessoal. Para além da preocupação com a saúde nutricional deste idoso, entendemos o alimento como um meio de ofertar afeto diário. “Cozinhar é um modo de amar o outro” – já dizia Mia Couto, e essa atmosfera de afeto transborda e fica evidente entre todos os envolvidos no processo: a cozinheira que prepara, o cuidador institucional que entrega, o motorista que dirige até cada casa e, finalmente, o idoso que recebe.

Além disso, a equipe técnica do equipamento, formada por assistente social, psicóloga e coordenadora realiza um atendimento semanal, via chamada de vídeo, com cada idoso e uma vez por mês o técnico de enfermagem – sob acompanhamento e direcionamento da equipe técnica – realiza uma visita mensal, a fim de promover orientações e intervenções pertinentes. Uma das intervenções ocorre sempre que algum idoso tem sua receita médica atualizada. Com o acompanhamento do profissional a família sana todas as suas dúvidas sobre as mudanças ocorridas na receita, quando há, e tem apoio de orientação bem como na organização física da caixa de remédios do idoso; caixa essa criada pelo próprio idoso em oficina manual dentro do equipamento. Ademais, a partir de uma articulação entre a coordenadora do serviço e a geriatra alocada na Secretaria de Saúde, há, por meio da intervenção do profissional da enfermagem, marcação de consultas para os idosos assistidos. Muito comprometida, desde o início deste novo formato de trabalho, a geriatra se faz presente nas reuniões técnicas online da equipe do Centro Dia.

“Proteger sem isolar”

Como humanamente colocou Pauvres quando divulgou um Plano de Combate à epidemia em moradias na França com este título, também é nosso norte de trabalho “proteger sem isolar”. A partir da leitura de Pauvres analiso o quanto pensar e desenhar políticas referentes à moradia coletiva, e tantas outras, se faz necessário, em momento de pandemia, e principalmente pós-pandemia, para defender o direito do idoso permanecer em sua casa, em seu território, onde se reconhece enquanto sujeito e pode praticar sua autonomia. Mas, que idoso é esse? Que casa é essa? Que condições são essas? “As moradias são abrigos para o corpo e a alma e, portanto, devem refletir os desejos de segurança, acolhimento e privacidade”. Diante disso, o fazer profissional deve acompanhar e aceitar o movimento da vida, inclusive considerando, com sensibilidade e percepção aguçadas, o idoso que não estiver com o cognitivo preservado.

Taubaté: o envelhecimento e os serviços em números

Fazendo um breve histórico do município de Taubaté no trato com a população idosa, dados oficiais do CENSO de 2010 apontaram o total de 31.609 idosos vivendo no munícipio, e de acordo com relatos atuais de funcionários que pisam neste solo público, à época, a Secretaria de Saúde disponibilizava apenas um profissional geriatra para compor a efetivação do trabalho.  Já no âmbito da Política de Assistência Social existia o Projeto Conviver, que atendia 600 idosos e trabalhava na ótica do Fortalecimento de Vínculos, porém não nos moldes do ‘’SUAS’’ pois, neste período, o município ainda não havia aderido à Politica Municipal da Assistência Social. Ademais, a gestão pública mantinha convênio com uma Instituição de Longa Permanência.

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Em comparação, de acordo com a Fundação SEADE com dados publicados em junho de 2021, hoje o município tem em torno de 48.898 idosos. De serviços disponibilizados atualmente, temos:

1) a Secretária de Saúde que hoje conta com cinco profissionais geriatras;

2) a manutenção do ‘Projeto Conviver’, que atualmente atende 26 grupos totalizando 1200 idosos em Serviços Descentralizados;

3) dois Centros de Convivência do Idoso que possuem atividades pontuais com 900 idosos (com inauguração de mais um nesses tempos de pandemia, mas que ainda não abriu ao público);

4) cinco CRAS, dois CREAS, um Centro Dia do Idoso, e mantém-se o mesmo convênio com uma Instituição de Longa Permanência. De acordo com a técnica do CREAS, esta ILPI acolhe hoje em dia 80% das vagas compactuadas no município, e existe uma fila de espera para avaliação de solicitações para acolhimento, em um cenário parecido, o Centro dia do Idoso atende 40 idosos, e hoje conta com uma fila de espera que seria viável existir outro equipamento para atender a demanda.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz uma estimativa de que em 2025 o Brasil será o sexto país com o maior número de idosos no mundo. Essa projeção me remete a vários questionamentos, quais sejam: será que estamos preparados? Como a Política de Assistência Social, a Saúde e afins estão desenhando este cenário, será que estão se articulando?

Refletindo além do que está posto, e de acordo com a minha análise pautada na realidade que vivencio, na sociedade pós-pandemia, sobretudo os idosos, estarão mais debilitados, tanto no aspecto físico quanto no cognitivo. O Centro Dia do Idoso traz no seu Guia de Orientações Técnicas, que este serviço está em consonância com a Política de Assistência Social e é destinado a ofertar o serviço de Proteção Social Especial de Média Complexidade, atendendo Idosos, de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 60 anos, em situação de vulnerabilidade ou risco social, e cuja condição requeira o auxílio de pessoas ou de equipamentos especiais para a realização de atividades da vida diária, tais como: alimentação, mobilidade, higiene; sem comprometimento cognitivo ou com alteração cognitiva controlada (graus de dependência I ou II segundo a ANVISA).

Diante dessa definição fica explícito que idosos com grau III não serão atendidos pelo Centro Dia do Idoso e nem pela ILPI conveniada, pois este outro equipamento também é um serviço da Política da Assistência Social e não tem o suporte da Secretaria de Saúde. Sendo assim, essa Instituição não tem condições de acolher o idoso grau III – pois esta limitação requer um atendimento maior da saúde do que da assistência, por isso a extrema necessidade de um serviço híbrido. Watanabe concorda que:

a ILPI é um serviço de assistência de natureza médico-social, sociossanitária e deve proporcionar cuidados e ser um lugar para se viver com dignidade. Seus cuidados devem abranger a vida social, emocional, as necessidades de vida diária e assistência à saúde, caracterizando-se assim como um serviço híbrido, de caráter social e de saúde. (2009, p. 70)

Portanto, para atender a necessidade do sujeito em sua integralidade é de extrema necessidade que o Estado execute suas funções com o SUS – Sistema Único de Saúde e o SUAS – Sistema Único de Assistência Social caminhando juntos para a garantia de direitos na vida de todos os usuários, sobretudo os idosos.

Referências
BELASCO, Angélica Gonçalves Silva; OKUNO, Meiry Fernanda Pinto. Realidade e desafios para o envelhecimento. Disponível em < https://www.scielo.br/j/reben/a/YyPr9QcL5bn3p6TGVGCBzvM/?lang=pt> Acessado em 25 de junho de 2021.
BESTETTI, Maria Luisa Trindade. A velhice não é igual para. todos. Disponível em https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/a-velhice-nao-e-igual-para-todos/    Acessado em 21 de junho de 2021.
BESTETTI, Maria Luisa Trindade. Em que momento da vida é preciso repensar sobre hábitos e modos de morar? Disponível em https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/em-que-momento-da-vida-e-preciso-repensar-sobre-habitos-e-modos-de-morar/#:~:text=Destaque%20Geral%20Moradias-,Em%20que%20momento%20da%20vida%20%C3%A9%20preciso,h%C3%A1 Acessado em 25 de junho de 2021.
CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE PROMOÇÃO DA SAÚDE, 1., 1986, Ottawa. Carta de Otawa. In: BRASIL. Ministério da Saúde.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA . Panorama Cidade de Taubaté 2021. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/taubate/panorama Acessado em 21 de junho de 2021.
JÚNIOR et. Al. Fragilidade, perfil e cognição de idosos residentes em área de alta vulnerabilidade social in Andrew K. Frailty and Social Vulnerability. Frailty in Aging 2015; 41:186-195. Disponível  em https://www.scielo.br/j/csc/a/HLNLL5ZZLsWRnkRqSJ3x9nm/?lang=pt. Acessado em 21 de junho de 2021.
MALEIRO, Maricelma Rita. As instituições de longa permanência para idosos sob a perspectiva de um novo modelo. Disponível em https://es.mpsp.mp.br/revista_esmp/index.php/RJESMPSP/article/download/2 Acessado em 24 de junho de 2021.
SEADE – FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS. Perfil dos Municípios Paulistas 2021. Disponível em https://perfil.seade.gov.br/# Acessado em 21 de junho de 2021.
VARGAS, Matheus. Mistanásia: A morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação do direito à saúde no Brasil. Disponível em https://ambitojuridico.com.br/cadernos/biodireito/mistanasia-a-morte-precoce-miseravel-e-evitavel-como-consequencia-da-violacao-do-direito-a-saude-no-brasil/ Acessado em 22 de junho de 2021.

(*) Daniele Cristine Rodrigues Faria CalcanhotoServiço Social na Universidade de Taubaté – UNITAU. Atualização em Seguridade Social: Assistência Social; Envelhecimento Feminino; e curso de extensão “Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento” pela PUC-SP, no primeiro semestre de 2021. Atua com políticas públicas dirigidas ao envelhecimento, na Coordenação do Centro Dia do Idoso do município de Taubaté (SP) – Serviço de Gestão Compartilhada com a Prefeitura Municipal de Taubaté (Secretaria de Desenvolvimento e Inclusão Social). Trabalho escrito no curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento em 25 de junho de 2021. E-mail: [email protected]

Imagem destaque de Aline Dassel por Pixabay


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