Entrevista: Andréa Dutra, vivendo a plena potência

Entrevista: Andréa Dutra, vivendo a plena potência

Andréa está em muitos palcos: ora sozinha, ora no quarteto como única mulher, ora no Coletivo 50+


Sempre estou me perguntando: estou ocupando minha plena potência?
Se eu posso escrever, eu escrevo.
Se eu posso cantar, eu canto.
Se eu posso cozinhar, eu cozinho.
Estou assim, vivendo a minha plena potência!”
Andréa Dutra

Andréa Dutra, cantora e compositora há 35 anos, dedicada ao jazz brasileiro e ao samba. Em seu papel de artista, agora avança mais no de compositora e chega à fase de criação em que lançará o álbum Entre nós, primeiro trabalho com letras e melodias inteiramente autorais.

Como descreve, é em plena potência que ela chega em mais uma etapa da vida. Junto com a comemoração de seus 60 anos vem sua arte, essa que espelha muito da cidade maravilhosa onde nasceu, o Rio de Janeiro, palco natural de muitos artistas e de diversos estilos musicais.

A diversidade está presente nela, com a interpretação e com o bailar de sua música de estilo versátil.

Andréa está em muitos palcos: ora sozinha, ora no quarteto como única mulher, ora no Coletivo 50+ com muitas mulheres e ora no Arranco de Varsóvia numa mistura de gêneros.

Essa versatilidade nos mostra a polivalência da pessoa que é. Abrindo o coração também nos traz os bastidores do palco da vida real, onde, como mulher, teve de enfrentar o idadismo, o sexismo e o capacitismo em alguns momentos da vida, como quando o coletivo 50+ foi atacado por haters em redes sociais.

As palavras idadismo, etarismo e ageismo se referem a estereótipos e preconceitos relativos à idade. Pode ocorrer com crianças, jovens e adultos, mas pesquisas apontam maior incidência contra idosos. De acordo com a OMS (2021): “Estima-se que uma em cada duas pessoas no mundo tenha atitudes discriminatórias que pioram a saúde física e mental de pessoas idosas e reduzem sua qualidade de vida.”

Além desse impacto, ocorre a exclusão no mercado de trabalho e cerceamento de novas possibilidades do existir socialmente.

Por isso, combater os “ismos” é tão importante. Vamos extinguir da história o racismo, o sexismo e o idadismo.

Silmara: Em sua canção Linha do Tempo, nos trechos que fazem referência à juventude: “Você é muito nova pra dizer não”; “Você não tem cacife pra dizer não”; “Você não tem vivência pra dizer não”, e os que referenciam a velhice: “Não dá mais tempo pra escolher”; e “Você tá muito velha”, podemos considerar que fazem resistência ao idadismo? O que a motivou a escrever essa letra?
Um dia eu comecei a pensar em todos os nãos que eu tinha escutado ao longo da minha vida. Vi que são nãos específicos para as mulheres. Os homens não ouvem esses tipos de não. É o tipo de não que a sociedade dá para a mulher. “Ela é nova demais”, “é gorda demais”, “é pobre demais”, “é inexperiente demais” e depois, “tá velha demais”. Resolvi fazer uma lista e fui arrumando poeticamente. Mostrei para a Patrícia Mellodi, que é minha colega do coletivo. Meia hora depois me devolveu a música prontinha, sem mexer sequer uma palavra minha. Realmente pensei na quantidade de nãos que escutamos e o que podemos fazer para driblá-los. Quando culmina no final da música que agora você é muito velha, que não tem mais tempo para escolher, e que agora você ficou velha demais para dizer não, encerra a ideia que no final das contas você nunca vai poder dizer não como mulher e que, ao chegar na velhice, não terá valor nenhum, ou seja: não temos mais chance pra nada?

Fazemos parte de um contexto social que contém diversos estigmas e somos também afetados por eles. Sente que em algum momento o autoidadismo esteve em você?
Sim, o idadismo é uma construção social estrutural, assim como o machismo e a homofobia. Então, naquele primeiro momento em que você se depara com a sua situação física no espelho ou de fora pra dentro alguém se refere a você como senhora pela primeira vez, você começa a ter raiva por ter deixado isso acontecer. Essa foi a minha sensação: o que posso fazer para conter isso? Como trabalhar esse autopreconceito? Digo que estou trabalhando e que é permanente essa construção.

Ainda nesta canção podemos pensar que a construção do imaginário social bloqueia o não, obrigando a falarmos o sim pra tudo? Em qual fase da sua vida esse bloqueio foi mais acentuado?
Na fase da juventude, momento em que começa a vida social autônoma, quando me vi fora da casa dos meus pais. É uma crescente. A apropriação do não é um ganho da maturidade. Aprendi que dizer sim não é uma forma de ser amada, nem de ser mais acolhida, é uma ilusão. Quando você começa a dizer não, vem a chance de mostrar quem você é. Se apropriar do não é uma construção de identidade, de autorrespeito e autoconhecimento.

Sua carreira de cantora e compositora já tem 35 anos, na qual divulga o Samba Jazz. Foi vencedora do prêmio Tim da música brasileira com o grupo vocal Arranco de Varsóvia e hoje participa de muitos outros. Como avalia o desenvolvimento desse papel?
Da mesma forma que a gente desenvolve uma identidade, a nossa personalidade artística também se desenvolve com a experiência e com a idade. Isso me transformou hoje mais em compositora do que eu jamais fui, pois além de intérprete, eu também tenho mais coisas a dizer agora. E esse papel de ser dona dessa voz, dona dessa interpretação, foi ganhando força à medida que eu fui me aceitando como mulher, como adulta.

Há 23 anos você faz parte do trio Arranco de Varsóvia. O que essa relação traz para o seu ser?
É um exercício de uma vida de trabalho em grupo, de convivência alegre. Estamos amadurecendo juntos. É muito lindo ver Cacala Carvalho, Paulo Malaguti Pauleira e eu.

Há dois anos você faz parte do Coletivo 50+, um grupo composto pelas cantoras e compositoras Ana Costa, Crikka Amorim, Germana Guilhermme e a Patrícia Mellodi. Que energia flui nesse encontro só de mulheres?
Nós somos de uma geração onde as mulheres eram vistas como rivais. Existia um mito que a mulher não era confiável, era invejosa e interesseira. E esse encontro vem mostrar pra nós que somos do século XX e para o público que ele é uma prova viva de que as mulheres podem se acolher, se admirar, se ajudar e se empoderar coletivamente.

Mas você também faz parte num grupo de homens, o Quarteto Moderno. Como é vivenciar essa diversidade?
Sim, essa relação existe há 23 anos, sendo eu a única mulher. Composto por Paulo Malaguti Pauleira no piano, Alex Rocha no baixo, André Fróes na bateria e eu na voz. Embora a maioria seja homens, agora o nome mudou, e é Andréa Dutra Quarteto. São homens, mas o nome é o meu [risos].

Eu vim de um lugar que quando iam elogiar uma mulher instrumentista era habitual dizerem: – Ela toca como um homem!

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Progressivamente nesses 35 anos de carreira fui vendo aumentar o número de instrumentistas mulheres no palco, tocando junto com os homens. Contudo, é uma realidade que é um universo machista. O mundo musical é masculino. De dez anos pra cá que isso foi mudando no Rio de Janeiro, lugar que conheço. Sempre tive bandas com homens no elenco e sempre tive uma sensação de menos-valia.Tanto que quando comecei a cantar aos meus 20 anos, foi um comentário de um homem durante uma passagem do arranjo, onde dizia: – Tá vendo, até ela sabe! – se referindo a uma coisa musical que outro homem não tinha conseguido executar, que me impulsionou a estudar música. Veio como um tiro, ali não tinha respeito. Ele era um músico da minha banda, eu era a líder do grupo e eles não me respeitavam como músico.

E hoje?
Hoje a relação é de igual para igual. Seja no quarteto ou não. Sou músico. Até a palavra músico não tem no feminino. Lembrando que musicista não é o feminino de músico. Um homem pode ser um musicista, que é ser pesquisador da música. Então, veja bem, na língua portuguesa não há feminino para músico.

Você fez trabalhos com o Nelson Sargento. Ele completaria 100 anos em 2024. Nas composições dele tínhamos a presença dos morros, o Rio de Janeiro e uma crítica social. Como isso tudo se mistura à Andréa no processo de envelhecer?
Eu sou nascida e criada na zona sul do Rio de Janeiro, em Ipanema, um lugar de classe média alta. Naquele momento havia uma divisão muito grande imposta pela geografia social. Não havia negros no meu convívio, a não ser aqueles que prestavam serviços. E a música milagrosamente colocou a diversidade social e cultural na minha vida. Por causa dela tive a oportunidade de conviver com o Nelson e ouvir as histórias dele. A convivência com ele me mostrou que a potência está ligada ao talento e que esse talento independe da idade, da cor da pele e nem mesmo da geografia social.

Atuando como professora de canto há pouco esteve em São Paulo para uma atualização em pedagogia da voz.  Esse é um exemplo de que é preciso estar seguindo junto com o tempo?
Sim, pra mim a tão buscada “fonte da juventude” é ter o interesse pela vida e a minha curiosidade não cessar. Independentemente da potência do corpo que se modifica com a idade, a gente pode ir a muitos lugares simbólicos com a mente e com o estudo. Depois dos 50 anos estou com mais tempo para mim, um excelente momento para estudar, me preparar para o 2º ato, recomeçar e enriquecer a vida interna.

Foto de Mônica Ramalho

No lançamento de um álbum do Coletivo 50+ vocês sofreram ataque de um grupo de haters via internet, insultando-as e citando frases que revelaram o idadismo. Qual sentimento surgiu naquele episódio?
A primeira sensação foi de incredulidade porque a gente não se vê assim. Costumo dizer que a idade é um escafandro e que nós somos os mesmos do lado de dentro. Quem está do lado de fora, vê o escafandro antes de ver a gente. Veio um sentimento de uma invasão brutal, atacou a sensibilidade, a autoimagem, num instante nos colocou em dúvida de mim, mas rapidamente passou, foi no susto.

O idadismo traz impactos psíquicos. Para fortalecer o seu eu, o que fez internamente?
Eu precisei naquele momento recorrer ao espelho interno dos valores. Lembrar quem sou e o que estou fazendo ali.

O que o espelho interno lhe disse?
Me retornou com a lembrança de uma música que uso sempre para abrir os shows do Coletivo, como um mantra, o nome é Dia Santo e tem como frase central: “Enquanto estiver viva, vou viver! Todo dia, é dia santo!”

Pesquisas apontam que a primeira reação frente ao idadismo é o de agressão ou isolamento social, mas vocês tiveram a oportunidade de serem estratégicas. Conte-nos um pouco.
A violência é filha da ignorância. Agredir uma pessoa pela idade dela é fazer um recorte cruel da sua própria vida, pois o agressor também tem família e vai envelhecer. Precisamos virar o espelho para essa pessoa se enxergar, pois envelhecer é um fenômeno natural, não precisa se culpar ou ser agredido por estar velho. A estratégia do Coletivo é oferecer em nossos projetos futuras oficinas sobre idadismo com pessoas jovens, para discutirmos, através da arte e da música, como a idade é um valor relativo e uma construção social que pode ser positiva.

“Flor de ir embora, eu vou
Agora esse mundo é meu…”

Essa canção de Fátima Guedes significa muito pra mim.
Considero um hino contra o idadismo.

Serviço
Link das redes sociais: https://linktr.ee/AndreaDutra

Foto destaque de Marcio Monteiro

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Mulher branca, de óculos
Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: [email protected]

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Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: [email protected]

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