De redemoinhos e ventos secos

Os ventos fortes do mês de agosto no Nordeste do Brasil, em ano de seca, principalmente, são muito secos. E quentes. Por serem indolentes e cáusticos, desprezam todas as vidas, invertem a razão de viver. Logo nas primeiras horas dos dias, sem esforço, destroem a brisa que a madrugada criara com dificuldades. É sempre assim. Mesmo sem amanhecer de todo o dia, para quem vive ou disfarça a morte de vida, já respira um ar de mais de 30ºC.

Alcides Freire Melo * Texto e Fotos

 

de-redemoinhos-e-ventos-secosRevoltados, sempre, estes ventos possuem “coragem” e força suficiente para, despretensiosamente tangerem tudo. Varrerem o bem e juntam ao mal para modificar a esperança e alterar a fé “sólida” desta gente. É assim que estes ventos agem quando chegam. Foi assim na estrada que liga a sede do município a Serra do João Pereira. Estrada de terra batida, “pintada” de vermelho, desde o final do ano passado como uma perigosa boca com batom carmim.

A força deste vendaval joga para o alto, em rodopios, rumo ao céu, a palha do milho, galhos secos, sabugos e papéis. Desmancha os varais coloridos das cercas de varas e não se esquece de levantar e deixar sobre as cabeças as saias de chita coloridas. Faz as curvas da estrada, encontra casebres, destelha e segue desafiador a tudo e todos. Sobre a parede do quase seco açude do José Donana, encontra seu Sabino que tangia suas seis vacas leiteiras para o curral. O vento está endiabrado. Sabino não tem como correr e, para se proteger, o criador tapa as narinas e a boca com o chapéu. Não consegue mais aboiar e a necessidade de fechar também os olhos para este cenário saariano, obriga a uma caminhada por “instrumentos”: quem o guia é o chocalho das vacas que seguem por instinto.

O corpo atlético, mais de 1,80m de altura e as sandálias de sola crua e pneus, levam Sabino para fora do redemoinho. Os pés, rachados como o barro-de-louça do Açude da Ingá, onde sobrevive um pequeno lago como uma gota de lágrima da terra que “chora”. Este açude é o ultimo alento para todos os animais e homens, inclusive. Mais nada depois dele. O vendaval passou logo. Os chocalhos das vacas ficam mais calmos e agora batem no ritmo sereno, como o sorriso de sempre que voltou ao rosto de expressões leves de Sabino, este tangedor de vacas, contador de histórias, causos e criador de vocábulos para junto a outros personagens, como o João Doutor, viajarem no mundo imaginário dos sertões, cangaços, enchentes e outras secas que contribuíram menos que os governantes com a construção da miséria do Nordeste.

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A torre da igreja, caiada de branco, começa a aparecer amarelada pelo sol vermelho que se põe atrás da Serra dos Oitis. O sino toca, guiado pelo relógio de ouro que tem a fama e o poder de “senhor do tempo” da região. Todos sabem que ele “repousa” no fundo do confortável bolso da batina do padre. Assusta mais, quando propositadamente deixa pender para fora a grossa corrente de ouro que o prende a batina. O ouro parece fogo sobre o preto que veste sempre o vigário.

É ele, o “algibeira” (relógio de bolso), por meio da voz do sacerdote, que determina e obriga o sacristão a bater as badaladas que tangem os fiéis rumo à missa. E tangem. São 17 horas. Com a última batida, o eco invade o vazio da praça, do mercado e chega à casa do Seu Sabino. Encontra e harmoniza com o rangido da cancela de madeira no fundo do quintal, depois de retirada a tramela para a entrada das vacas.

de-redemoinhos-e-ventos-secosEscorada na parte inferior da porta de duas bandas e o olhar “perdido” ao fundo do quintal até a entrada da primeira vaca, Dona Maria segura e esfrega com as duas mãos o pano de enxugar pratos. Repetidamente ajeita com as costas das mãos os óculos que escorregam no nariz. Numa frequência maior quando ficava ansiosa, mais ainda a espera do marido ao final de todas as tardes. O ritual acontecia todos os dias há mais de cinquenta anos. As vacas recebem uma ração balanceada, milho e resíduo de caroço de algodão, e os bezerros se alvoraçam em busca das últimas chupadas nas tetas até a apartação.

Carinho com o marido e cuidado para não deixar a poeira das sandálias de pneu manchar o piso brilhoso de cimento queimado da casa, Maria deixava o banho pronto. O banheiro fica fora da casa. Bacia, jarra de ágata com água morna, toalha branca e Água de Colônia 4711. Terminado o banho, quando segue pelo corredor em direção à calçada da casa, roubava-lhe um pouco do cheiro e um sorriso de Dona Maria. É lá, na calçada, com a cadeira de assento de couro de bode escorada na parede, que Sabino vira contador de histórias. Costuma trocar os personagens e o final para aproximar-se da felicidade que por vezes não aparecia. Cumprimenta pelo nome cada um que sobe e desce a rua. Fica distribuindo boas-tardes até a hora do jantar.

Com o passar do tempo, dos dias, a quantidade de boas-tardes aos conhecidos do Seu Sabino foram diminuindo. Por longos minutos, se fazia o silêncio. Nenhuma sandália. Muitos se mudaram da cidade, outros de dimensão. Certa vez, falando com Deus, quando orava, comentou sobre a seca, pedia chuva para aliviar o sofrimento do povo. Foi assim contando algumas histórias e rezando até chegar aos noventa anos, quando foi ao encontro de muitos amigos. Construiu logo uma casa com piso de cimento queimado para esperar a Maria, que ficara ajeitando ainda por dois anos os óculos a cada minuto de solidão. Recentemente chegou uma filha. Juntos, ajudam a quem ainda não sabe enfrentar redemoinhos, secas e ventos secos.

* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos.

Colaborador do Portal. E-mail: [email protected]

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