Curatela – reflexões sobre o dever de cuidar

Aquele que está na iminência de ser o curador precisa ter sua identidade e sua individualidade respeitadas e ponderadas, a fim de que se tenha certeza de suas condições de poder cuidar e, claro, da afetividade que está ou estará ou não atrelada às suas incumbências advindas da curatela.


É bastante comum a todos aqueles que vivenciam ou que estão na iminência de viver um processo de curatela, questionamentos sobre o dever de cuidar que dele advém, seja porque alguém próximo já é curatelado ou porque há uma possibilidade certa ou quase certa de que, em curto espaço de tempo, uma pessoa, de considerável proximidade, será curatelada.

Os questionamentos sobre o dever de cuidar de alguém próximo, que já é ou que será curatelado têm, geralmente, alguns pontos em comum, como, por exemplo, os gastos financeiros, as condições/adaptações físicas do local onde o curatelado ou o futuro curatelado reside ou irá residir, a demanda de profissionais que precisam ou que precisarão atendê-lo a fim de dar o suporte técnico ao que se fizer necessário e, inevitavelmente, as condições pessoais daquele que cuida ou que cuidará e ainda a relação entre as partes envolvidas.

É comum que muitas pessoas que vivem esta situação ou que estejam na iminência de vivê-la, passem ou tenham passado por conflitos pessoais com aquele que lhe é bastante próximo, que está ou que será curatelado, já que não é incomum, por exemplo, que pais e filhos vivenciem, ao longo da vida, inúmeras experiências que os aproxime ou os afaste.

Por esta razão, não são raras as situações nas quais filhos que se encontram com um pai e/ou uma mãe em situação de curatela, não se sintam em condições pessoais que os possibilite cuidar daquele que demanda cuidados, no caso de serem estes filhos os curadores ou os iminentes curadores dos pais e das mães que demandem cuidados.

Quando falamos de curatela, precisamos ter em mente que aquele que é curatelado precisa de cuidados que vão muito além de receber alimentos e hidratação, de ter as fraldas trocadas e os medicamentos administrados segundo orientações médicas ou ainda de serem as suas contas pagas em dia e ponto.

Aquele que é curatelado, independentemente do grau de independência, de autonomia e de compreensão que possua, precisa receber amor, carinho e proteção, como todo e qualquer ser que vive.

Ocorre que, exatamente porque algumas inúmeras situações ao longo da vida afastam ou aproximam pais e filhos, ainda que haja alimentos, fraldas, medicamentos e contas pagas, não existirá amor, nem carinho e nem proteção. A incumbência de um curador vai muito além da assistência material, já que aquele que cuida exerce o papel de cuidar na acepção mais abrangente possível do tema e, nem sempre, ela é possível.

Uma situação que comprova esta afirmativa é a que foi julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), mais especificamente pela 2ª Vara de Família e de Sucessões da Comarca de São Carlos (fonte: http://www.tjsp.jus.br/Noticias. Noticiado pelo site do TJSP em 20/01/2020. O número do processo não foi revelado porque ele tramita em segredo de justiça).

O julgado trata da curatela de um pai, no qual a filha “se recusa a assumir a incumbência sob o argumento de que foi abandonada pelo genitor quando era criança e, no curto período em que conviveu com ele, sofreu diversas agressões”.

Ainda que exista legalmente a esta filha e a todos os que com ela se identifiquem, o dever legal de arcar com os alimentos necessários à sobrevivência de seu pai e/ou de sua mãe, já que ela e todos os outros que vivenciam situações semelhantes têm a obrigação legal de arcar com os custos materiais do que se fizer necessário, a justiça ponderou que o amor, o carinho e a atenção não entram nesta conta e que, por esta razão, não há de se exigir que aquele que não tem nenhum vínculo afetivo com aquele que precisa de cuidados, seja ou venha a ser o seu curador.

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Cabe, a esta pessoa e a todas as que estiverem em situação similar, o dever de pagar as contas do curatelado igualmente se o curatelado não tivesse passado pelo processo da curatela e igualmente fosse o caso de se ter de custear alimentos e hidratação, fraldas e medicamentos, mas não há como exigir de qualquer pessoa nesta condição que ela ame a pessoa que economicamente dela depende.

O caso julgado pelo TJSP apresenta uma situação na qual “o homem é interditado e dependente de auxílio permanente. Suas duas irmãs são as curadoras, mas uma delas ingressou com ação para se desencarregar da obrigação, pois em breve viajará para o exterior. Para tanto, indicou a permanência da cocuradora ou a inclusão da filha do curatelado – esta, no entanto, se recusa a assumir o encargo”.

As razões que asseguram a impossibilidade da filha de assumir o encargo estão baseadas exatamente na impossibilidade de se exigir que ela mantenha vínculos de afetividade com este pai, já que um “laudo social comprova a falta de relação entre o curatelado e a filha, bem como laudo psicológico aponta o sofrimento emocional da mulher, traumatizada pelo comportamento negligente e violento do pai”.

Esta ponderação foi muito bem considerada pelo juiz da causa, Dr. Caio Cesar Melluso, ao avaliar que: “ainda que seja filha do curatelado, tal como não se pode obrigar o pai a ser pai, não se pode obrigar o pai a dar carinho, amor e proteção aos filhos, quando estes são menores, não se pode, com a velhice daqueles que não foram pais, obrigar os filhos, agora adultos, a darem aos agora incapacitados amor, carinho e proteção, quando muito, em uma ou em outra situação, o que se pode é obrigar a pagar pensão alimentícia”.

A decisão, que ainda é passível de recurso segundo noticia o próprio site, abre novos caminhos para a questão da curatela, já que pondera que não apenas o curatelado, mas também o curador necessita de uma atenção biopsicossocial, principalmente na eventualidade de o curador ou possível curador se deparar com uma situação de curatela e suas condições pessoais não o permitirem exercer esta incumbência.

Tudo precisará ser avaliado e ponderado, como ocorreu na causa comentada.

Na mesma medida em que o curatelado passa por um processo no qual há uma análise de seus aspectos biológico, psicológico e social, aquele que está na iminência de ser o curador, também precisa ter sua identidade e sua individualidade respeitadas e ponderadas, a fim de que se tenha certeza de suas condições de poder cuidar e claro, da afetividade que está ou estará ou não atrelada às suas incumbências advindas da curatela.

Os laços de afetividade são de tão grande monta que não há como custeá-los financeiramente ou ainda como exigi-los judicialmente, sendo importante compreender que a justiça tem considerado estas questões para que somente assim seja, efetivamente, justa.


É de grande importância que a sociedade reflita e discuta a respeito do que deseja para si por intermédio das Diretivas Antecipadas de Vontade, tema do curso que será ministrado por Natália Carolina Verdi no Espaço Longeviver. Inscrições abertas em: https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/produto/diretivas/

Natalia Carolina Verdi

Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: [email protected]

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Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: [email protected]

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