Bem traçadas linhas

Havia um bocado de ansiedade no ar, quando um grupo de idosos(as) e de crianças começou a chegar para um encontro na manhã de 2 de dezembro de 2011 na cidade de Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. Depois de quase um ano trocando correspondências, 54 frequentadores(as) do Centro de Convivência da Melhor Idade (CREMI) e 51 alunos(as) da Escola Municipal Professora Aida de Almeida Castro Grazioli iriam se conhecer pessoalmente. “Você sabe quem é o vovô que me escreveu esse ano?”, quis saber um dos alunos recepcionados por Divina de Fátima dos Santos, assim que desceu do ônibus. “Espere que você vai descobrir já, já”, ela respondeu.

Redação do Conselho Regional de Psicologia

 

Divina, 45 anos, é psicóloga e mestre em Gerontologia. Há dois anos, ela e o marido trocaram a agitação de São Paulo por Ubatuba. O projeto Encontro de Gerações que ela desenvolve na vizinha Caraguatatuba é a base de sua tese de doutoramento em Psicologia Clínica, pela PUC SP. À primeira vista, uma troca de correspondências entre idosos(as) e crianças pode parecer algo muito simples. Ela foi responsável, contudo, por desencadear um rico processo de mudança de atitudes e de construção de valores éticos, que se ampliou para as próprias famílias dos(as) participantes. Se restassem dúvidas sobre o significado da iniciativa, o encontro promovido no CREMI na manhã daquela sexta-feira não deixaria nenhuma de pé.

As cadeiras do salão foram organizadas de modo que, os(as) presentes pudessem se olhar e tentar se descobrir, a partir de algumas dicas dadas pela coordenadora do projeto, quem era o seu(ua) correspondente. Assim, todos(as) foram convidados(as) a olhar e procurar pelo seu “par”. Na troca de olhares alguns(mas) se descobriram e se emocionaram. “Eu queria tanto falar um montão de coisas para a minha menina, mas na hora meu corpo tremia tanto que fiquei muda e só consegui abraçá-la…”, relatou uma das avós. Outro idoso afirmou: “Eu sabia que era ele! Desde que ele chegou aqui!”

Divina não chegou a ficar surpresa com o resultado. Em 2010, ela desenvolveu iniciativa semelhante em uma Escola do SESI, em São Paulo, envolvendo crianças e participantes de um curso de Educação de Jovens e Adultos. O projeto realizado em 2011, em Caraguatatuba, também foi antecedido por um piloto de seis meses, reunindo idosos(as) e estudantes da cidade. A experiência acumulada nessas situações deu a ela uma visão antecipada sobre os efeitos positivos da proposta. Isso e o rigoroso acompanhamento dessas iniciativas lhe valeram nada menos que três prêmios: a do SESI ganhou o primeiro lugar em dois eventos de Gerontologia, um no Chile, outro em São Paulo; a de Caraguatatuba foi premiada na II Mostra Estadual de Práticas Inovadoras em Psicologia, realizada em dezembro último pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.

O que acontece de tão poderoso com essa troca de cartas? Numa palavra: envolvimento. “Tem criança que se entrega desde o começo. Além da carta, ela faz desenhos, dobraduras. Outras demoram um pouco mais. Mas, no geral, cria-se um laço. Com frequência, a correspondência serve para que tanto idosos(as) como crianças falem, ao seu modo, de suas vidas, expectativas ou dificuldades”, relata Divina. Um dos aspectos positivos que a experiência provoca é a valorização sentida pelos(as) idosos(as). A maioria, segundo a pesquisadora, percebe o quanto seu conhecimento e experiência são valiosos nesse contato com as crianças. Outro ponto de destaque: os pais e as mães das crianças que participam do projeto reportam melhoras no relacionamento familiar.

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O diálogo se amplia

Para colocar seu projeto de pesquisa em prática, Divina precisou convencer os(as) gestores(as) locais. Para sua sorte, encontrou ouvidos interessados como uma das coordenadoras da Secretaria de Educação de Caraguatatuba, que, no passado, participou de projeto numa linha parecida. Isso permitiu contar com o apoio das professoras Eliana Aparecida Oliveira, Tânia Espírito Santo e Katia Aparecida Viana que acompanharam os(as) alunos (as) na produção das cartas. Detalhe: ainda que não fosse o objetivo do projeto, ele acabou por se transformar em um recurso pedagógico importante. O interesse em escrever as cartas fez com que muitas crianças tomassem consciência de suas dificuldades com a escrita. “Algumas evoluíram muito nesse processo”, afirma a professora Eliana.

bem-tracadas-linhasSe as crianças ficaram com as professoras, o acompanhamento dos(as) idosos(as) foi feito por Divina, em encontros semanais no CREMI. Isso deu a ela a possibilidade de conversar com cada um(a) deles(as) sobre as diferentes situações criadas a partir da troca de correspondência. A vida também mudou para muitos(as) deles(as). Uma das avós, por exemplo declarou que se aproximou mais do neto e passou a falar mais com ele e a percebê-lo como um ser humano de verdade. “Antes eu achava que, por ser criança, ele não sofria”, disse uma delas à pesquisadora.

Outro fruto importante desse contato, segundo Divina, é a aproximação entre pessoas com experiências de vida e condições sociais diversas. “Um dos idosos veio falar comigo sobre a situação do garoto com quem se correspondia. Agora que o projeto se encerrou e ele e o menino se conheceram, ele está empenhado em ajudá-lo”.

O sucesso da iniciativa está valendo sua repetição em 2012 e também alguns bons problemas para Divina. “Perto de 150 idosos(as) se apresentaram para participar do projeto neste ano”, disse. Seja qual for a solução encontrada, a pesquisadora está feliz. “A principal tarefa deste trabalho é exatamente essa: estimular o convívio respeitoso de parte a parte”, diz. “Vivemos num mundo em que as relações estão ficando cada vez mais comprometidas. Esse projeto é importante por que estimula mudanças de comportamento no convívio social, familiar e escolar e porque resulta em um grau maior de tolerância e respeito entre pessoas de idades e classes sociais distintas”.

bem-tracadas-linhasNa reunião realizada no Centro de Convivência da Melhor Idade (CREMI), em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, alunos(as) da Escola Municipal Aida de Almeida de Castro Grazioli se encontram com os seus(suas) correspondentes (foto). Trabalho reforçou laços entre integrantes da comunidade.

Fonte: Reprodução autorizada de matéria publicada pelo Conselho Regional de Psicologia, baseada na entrevista feita em fevereiro 2012 com Divina de Fátima dos Santos, mestre em Gerontologia e doutoranda em Psicologia pela PUC-SP. A matéria trata do trabalho e pesquisa realizado em Caraguatatuba pela entrevistada. O artigo está disponível Aqui

 

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