La Corunha, cidade espanhola, está, sem dúvida, entre as mais belas da Espanha.
Sinto como se Fagner houvesse escrito Frenesi especialmente para La Corunha, cidade galega, para a qual a letra se encaixa perfeitamente:
A felicidade corre sem parar/Bela é uma cidade velha/Na velocidade a tarde leva o seu olhar/Longe descansar na estrela/E um corpo passa por mim/Água do rio na areia/Adormecendo assim/Esta pedra em mim/E meu leito clareia/Doce paixão, frenesi/doce ilusão/Moça bela/A solidão mora aqui/E a cidade é sem fim/Qual a tua janela?
A cidade está, sem dúvida, entre as mais belas da Espanha. É a capital da província de mesmo nome e tem pouco mais de 200 mil habitantes. Importante, os mais velhos amam os brasileiros e ensinam os mais novos a seguir gostando, pois graças a uma geração de jogadores talentosos, Donato, Mauro Silva, Djalminha e Flávio Conceição, o Depor, como carinhosamente é conhecido o time de futebol da cidade, entra para o seleto grupo de campeões espanhóis, em 2000, superando gigantes como Real Madrid e Barcelona. Pelo clube, na década anterior, também passaram Bebeto e Rivaldo, dois craques.
CONFIRA TAMBÉM:
Portanto, o brasileiro, por muito tempo, contará com a acolhida e o carinho especial do povo corunhês. E é graças a essas boas lembranças que coloco La Corunha no roteiro e aconselho a quem desejar ir à Espanha que coloque no seu. Por causa da cidade, convenço minha mulher e uma amiga a optar pelo Caminho Inglês para irmos a Compostela, partindo de Ferrol, 113km, que dá direito ao certificado, pois quem parte de La Corunha, 73km, fica sem o mimo.
Somos pessoas idosas, 68, 65 e 63 anos, gostamos de caminhar e nos preparamos para este desafio, considerado moderado, o dia que vamos andar mais são 24km. Definimos passar antes em La Corunha para se adaptar ao fuso horário e descansar antes de encarar a caminhada. Ferrol está a uma hora de trem, portanto, ao lado. Em La Corunha o Caminho se faz presente com seus símbolos e tótens pelas ruas e peregrinos a carregar grandes mochilas e a picotar o chão com cajados modernos, bastões made in China, fundamentais para ajudar nas subidas e evitar quedas nas descidas.
Mário, Beltrina e Maria Amélia, três velhos turistando em La Corunha antes da peregrinação
Na linda Torre de Hércules, símbolo da cidade de La Corunha (estampa a bandeira, o brasão de armas, domina a paisagem), farol mais antigo em funcionamento na Europa, começa uma das pernas do Caminho Inglês, a outra é a que vamos fazer, a partir do porto de Ferrol. Porém, quem opta por iniciar o Caminho em La Corunha sabe que se parar em Santiago, como faz a maioria dos peregrinos que trilham outros Caminhos, não terá direito ao certificado, a Compostela, que é apenas para quem anda mais de 100km. O santo não aceita pequenos sacrifícios, mas fecha os olhos para quem faz o caminho de bicicleta, barco e cavalo, ou despacha a mochila para andar leve e solto. Portanto, para superar os 100km, os peregrinos que saem de La Corunha vão além, não terminam a jornada em Santiago de Compostela, seguem o Caminho até seu verdadeiro fim, Finisterre, o fim do mundo dos romanos, que enche nossos olhos, mente e coração com sua beleza oceânica.
Antes de pegar o Caminho, portanto, vamos compartilhar as impressões sobre esta cidade apaixonante, La Corunha. A Torre de Hércules está localizada em uma vasta área verde, de vegetação rasteira, exatamente para que se destaque. Simetricamente, do outro lado da baía, encontra-se um imenso obelisco e, logo adiante, o morro de São Pedro. Em ambas as pontas, quem tem disposição e boas pernas, é seduzido a seguir caminhando por trilhas suaves no mato e se sentar nas pedras para contemplar o mar. É o que muita gente faz e, também, o que fazemos por horas. Toda a orla é salpicada por monumentos, paisagem natural belíssima, preservada e respeitada, praias bem frequentadas no verão, com a prática de topless, um indicador de civilidade, um calçadão sem fim para o trotear. O estádio Riazor, do Depor, no bairro de mesmo nome, é mais um monumento à beira mar. Come-se bem. Culinária à base de frutos do mar, mariscos, parrilhas de pescado, paella etc.
A primeira boa notícia é a língua, o galego se assemelha demais ao português, são línguas irmãs. Porém, o “j” e o “g” são substituídos por “x”, tornando engraçadas algumas palavras como os meses de xunio e xulho; xunta em vez de Junta; xente, xenero e assim por diante. Como se trata de uma língua local, a maioria das placas e indicações aparecem em dois idiomas, galego e castelhano.
Ruas são tomadas por pessoas velhas
É imensa a quantidade de pessoas velhas. Velhas e felizes. Integradas à paisagem. Pelas calçadas, sozinhas, acompanhadas, casais lado a lado, de mãos dadas, velhos e velhas passeando com netos e netas, em grupos, com filhas e filhos, com pets, especialmente na região do porto, no entorno da cidade velha. Como o piso favorece, o trânsito de cadeiras de roda empurradas, automatizadas e scooter de todos os tipos é intenso. No porto, na área reservada para nadar, pessoas velhas em trajes de banho usufruem livremente das águas geladas, 12 graus neste início de verão.
Viver a velhice em uma cidade como La Corunha é um sonho. Nos bares, pessoas idosas ocupam a maioria dos assentos, tomam vinho e cerveja, conversam, comem pratos locais deliciosos, como zamburrinhas, doces e sorvetes. São muitas e belas as igrejas como a de Santiago e São Jorge. Ótimas praças, como a de Maria Pita, uma lenda local. Áreas verdes para se sentar e descansar. Bancos por todas as ruas e praças. Nas partes altas, elevadores públicos ajudam a vencer ladeiras. Difícil apontar defeito em uma cidade tão bela, especialmente a cidade velha.
Como a Europa inteira tem nas pessoas idosas seu maior contingente populacional, o que chama a atenção no censo de 2024 são os centenários. Nesse quesito, La Corunha, a província, é a quarta da Espanha, com 570 centenários de um total de 16.902 em todo o país. Por volta de 80% são mulheres, mas se vê cada vez mais homens idosos pelas calçadas, caminhando, se exercitando, não apenas nos bares, concorrem com as mulheres para chegar mais longe e mudar as estatísticas. No forte de Santo Antônio, na entrada do porto, onde funciona o Museu de Arqueologia e História, encontramos quatro visitantes representando três gerações de uma mesma família, as crianças, dois meninos, uniformizados com a camisa oficial do Deportivo de La Corunha, o pai das crianças e o avô. Felizes, como está toda a cidade, porque o time acaba de se sagrar campeão da terceira divisão e, no segundo semestre, disputará a segunda. O avô fica com lágrimas nos olhos ao lembrar o esquadrão campeão de 2000 com os brasileiros famosos. Seu filho lembra de todos, mas as crianças não têm a mesma dimensão e talvez nunca venham a ter, o herói deles é Lucas Pérez, um bom jogador, oportunista, mas longe de ser craque como Djalminha, que marca um gol de falta na goleada contra o Real Madrid, 5 x 2, em 2000, quando o time se sagra campeão nacional. Tampouco de um Bebeto, que em 1995, quando o time injustamente perdeu o título na final, ficando como vice-campeão nacional, marca três gols contra o mesmo Real Madrid.
Ser brasileiro em La Corunha, entre os mais velhos, é carregar uma história de sonhos e glórias, só imaginada pelos mais novos. A cidade inteira está enfeitada com a bandeira azul e branca do Depor, povo feliz, pessoas velhas mais felizes ainda, e nós, brasileiros, admirando as fachadas trabalhadas de ferro e madeira, algumas com bandeiras do time, que formam um desenho mágico ao longo da orla, diante do porto, na qual a velhice se espalha ao sol e agradece por poder deixar a tarde levar seu olhar para descansar nas estrelas, como canta Fagner.
Fotos: Beltrina Côrte