A etapa de Betanzos a Bruma, 24 km, é o grande teste do Caminho Inglês que parte de Ferrol.
De forma simplista, a vida surge na água, no mar de Zumaia (Deba), que representa todas as águas, na costa basca, região metropolitana de San Sebastián, no fantástico Caminho Do Norte (825 km), com rastros de vida que somam 65 milhões de anos. Mas, para sobreviver, a vida sobe a serra, como provam os achados de Atapuerca, em exposição no Museu da Evolução Humana, na impressionante Burgos, no Caminho Francês de Santiago (800 km).
Deuses e semideuses orientam os humanos: ocupem cavernas no alto de montanhas, picos, serras, morros, sempre no alto, em local estratégico, contando com a proteção das águas, das matas e, principalmente, das pedras. A espécie sobrevive, se multiplica, evolui e usa o ensinamento da pedra para criar cavernas artificiais, escavadas, altares, casas, catedrais, cidades, sempre no alto, protegidas por muros, muralhas, algumas levantadas com a ajuda dos deuses, como as de Troia, construídas por Apolo e Poseidon.
Sob a proteção da pedra, chega-se a velhice tal qual a conhecemos atualmente, e as pessoas idosas são temidas, admiradas, respeitadas, transmitem conhecimentos, ocupam cargos importantes, são xamãs, juízes, curandeiras, sacerdotes, educadoras, legisladoras, são a memória histórica de um povo, cultura, mistério, a velhice é desejada e cultivada.
A pedra dá segurança, a mata camufla, a terra fornece o alimento, a água fecunda, as cidades se mantém de pé, mas mudam de mão, quem antes reina, torna-se escravo, é sacrificado, assassinado, mas um povo nunca é extinto de fato, conta com a proteção dos deuses, oram diante de altares de pedras para que o deus sol ressuscite a cada manhã para iluminar os caminhos.
A população incha, se esparrama como água na cheia, para além dos muros, morro acima, e quando não há mais morro, ocupa a outra margem do rio. Certa de que o sol voltará a brilhar, cresce sem parar, expõe-se, vive carregada de medo, não mais de monstros, nem da natureza, previsível como o sol, o medo é do próprio homem, que destrói, mata.
Mesclam-se culturas, misturam-se, envelhecem. O morro deixa de ser atraente, o porto, por onde chegam e saem mercadorias, atrai mais, o comércio faz prosperar vilas, nas baías surgem cidades com suas catedrais de pedras, fortes, faróis, protegidas também pelo fogo que aponta para o mar, para que seus barcos não se choquem contra a rocha protetora, penhascos, para que outros homens, bárbaros, não destruam suas cidades.
Ferro e fogo nem sempre resistem ao sopro do vento bárbaro que vem do mar, em naus leves, de madeira. Vale a lei do mais forte, cidades e povos caem e se levantam, misturam-se, mesclam-se culturas, camadas sobre camadas, ossadas, cacos de vida passadas, Zumaia, Atapuerca, é o que nos revela o Caminho de Santiago de Compostela.
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Betanzos, como todas as cidades antigas, nasce como caverna murada, na margem alta de um rio, Mandeo, e se expande morro acima. Envelhecer nesta parte histórica da cidade não é bom negócio, mas a velhice, hoje, está ao alcance de todos. Dentre os 13 mil habitantes da cidade, a parcela envelhecida ultrapassa 20 por cento.
A etapa de Betanzos a Hospital de Bruma, 24 km, é o grande teste do Caminho Inglês que parte de Ferrol, cidade portuária que carrega o carma de ser a terra natal de Francisco Franco, ditador que dirigiu a Espanha com mão de ferro entre 1939 e 1975. Nos surpreende a quantidade de pessoas que param diante da modesta casa, na Rua Frutos Saavedra, para fotografar a fachada das entranhas que pariu o monstro. A maioria, por curiosidade; extremistas de direita, para render homenagens ao caudilho, manchando, assim, a rota xacobea (em galego) ou jacobeia (em castelhano).
De onde surgem esses nomes? Da Bíblia, claro. Nela, o apóstolo Tiago El Mayor é chamado de Jacob (Xacob) ou Iacobus, filho de Zebedeu. O mesmo Tiago é James para os ingleses e Jacques para os franceses, mas o santo-apóstolo, indiferente a nomes, acolhe a todos. O Caminho não é trilhado apenas por religiosos, antes, trata-se de uma jornada espiritual; para muitos, uma aventura. Tem ainda quem encare o Caminho como desafio. Seja qual for a motivação ou o trajeto escolhido, será uma viagem verdadeiramente única e inesquecível.
Deixar-se levar pelo encanto, beleza em estado bruto e lapidado, forte, sensível e comovente ao mesmo tempo, é trilhar pela história, mitos, lendas, caminhar com os pés no chão e nas nuvens, pois em muitos momentos manda a razão; em outros, o coração nos transporta.
O filme The Way é um retrato fiel do Caminho. Martin Sheen (Tom), na época com 70 anos, 2010, é quem realiza o Caminho, atendendo ao desafio lançado pelo filho Emilio Estevez (Daniel). Pai e filho no filme e na vida real. Os personagens destacados no Caminho são uma canadense, cujo objetivo é largar o cigarro; um holandês, perder peso; e um irlandês, escritor que quer superar um bloqueio criativo. Todos inventam uma resposta porque ela simplesmente não existe, a resposta se revela no Caminho. Todos caminham sozinhos, mas no Caminho ninguém está só, como mostra o filme.
Cada um carrega os elementos essenciais, fundamentais, como o bastão, e outros simbólicos como a concha da zamburrinha e uma pedrinha para jogar em um milladoiro (altar de pedras) pelo Caminho. Não é preciso ser atleta para realizar o Caminho, Tom joga golfe e os outros não são exemplos de vida saudável, longe disso.
Jamais havíamos feito uma viagem assim, carregando o mínimo em uma mochila: uma calça-bermuda, uma blusa corta-vento, um pulôver, dois pares de meias, duas peças íntimas e mais uma coisinha ou outra além do computador. No máximo seis quilos. Com espaço, ainda, para uma fruta, uma barra de cereal, um chocolate, uma bolacha, um lanche.
A liberdade ganha forma quando não precisamos pegar fila para despachar bagagem, quando andamos com as mãos livres e sempre para a frente. Não passamos nenhuma noite em albergue, como os personagens do filme, optamos por pensões e hotéis, com mais conforto e privacidade. Há quem deseja mais liberdade e despache a mochila a cada parada pelos serviços diversos oferecidos ao peregrino, dos Correios ao popular Mochila Express.
Assim, respirando liberdade, nos levantamos cedo para encarar a rampa inicial na saída de Betanzos. Neste trecho, o primeiro ponto de apoio só aparece depois de oito quilômetros. Se a vontade de fazer xixi se manifesta, a mata nos protege, como mostra o filme. O bar, quando surge no horizonte, é como miragem.
Logo se materializa em chegadas e partidas, filas para usar o banheiro, xícaras de café, canecas de chá, torradas, tortas, sanduíches, vinho, cervejas, refrigerantes e água. E não faltam histórias nas mesas compartilhadas, risos e abraços muçulmanos, cristãos, judeus, godos, visigodos, ostrogodos, hunos, mongóis, vikings, árabes, romanos, otomanos, todos manos depois de tantas batalhas inúteis, lamentadas por todo o Caminho em cartazes e pichações: Stop Genocídio! Somos todos Palestina!
Depois de andarmos mais de sete quilômetros, encontramos uma plataforma de bicicross com ares de abandono, fizemos dela nossa mesa de almoço, ovos cozidos, frutas e doces. Porém, 500 metros adiante, há um verdadeiro clube de campo, com restaurante, banheiros, água, mesas para piquenique e espaço para lazer, voltado para a população local e para peregrinos, é a zona recreativa de Vizoño. Um grupo de idosos, bem fragilizado, a maioria com andadores estacionados ao lado da grande mesa, come animadamente na companhia de cuidadoras.
São jubilados (aposentados) que, na Espanha, ganham uma pensão média de 1.375 euros (por volta de 8.000 reais). Aí pensamos, mas o custo de vida deles… É muito parecido com o nosso, ganhamos pouco, mesmo. Eles ganham em um mês o que a maioria dos aposentados brasileiros ganha em seis. Estamos longe de ter a qualidade de vida almejada, pois continuamos sendo, infelizmente, aposentados.
Na Espanha, a pessoa idosa, a maioria, está fora do aposento, nas praças, nos bares, nos parques, é uma velhice presente e muito bem-vinda, aceita pelo comércio de rua que dispõe de bancos, mesas e cadeiras para recebê-la nos terraços e nas calçadas. É impressionante a quantidade de pessoas idosas circulando, consumindo, movimentando a economia. Em toda a Espanha são por volta de dez milhões, 20% da população, havendo 30% mais mulheres velhas do que homens velhos. Em 2040 serão 15 milhões, pulando de 20% para 30% da população espanhola (dados do CSIC – Consejo Superior de Investigaciones Científica).
Nosso objetivo é ter pernas para chegar a Hospital de Bruma, uma pequena aldeia com menos de 100 habitantes, no município de Mesía. O antigo hospital medieval, datado de 1175 é, hoje, o albergue oficial, mas possui poucos leitos, apenas 22. Uma pensão e um albergue privado tentam suprir as necessidades dos peregrinos, mas são insuficientes, porque a quantidade dobra em As Travesas, são quase 200 pessoas em busca de alojamentos. Aqui, os dois ramos do Caminho Inglês se fundem, reunindo os peregrinos que saem do porto de Ferrol, Curuxeiras, e da Torre de Hércules, em La Corunha, uma das três cidades mais bonita da Espanha. Não dá para simplesmente passar por ela, como faz a maioria dos peregrinos, é preciso reservar no mínimo três noites na cidade e explorar o máximo, ainda assim restará um gostinho de quero mais.
Os ensinamentos deixados pelo catalão Francisco e sua cadela Mossa, se tivessem chegado mais cedo, talvez tivéssemos encontrado tempo para conhecer o litoral de Ferrol e, especialmente, San Andrés de Teixido, recomendado pela nossa anfitriã em La Corunha. San Andrés, o invejoso, ela brinca. A verdade é que ele sempre quis ocupar o lugar de Tiago. Conta o mito que primeiro Jesus chamou Tiago para compor seu rebanho. Tiago trouxe seu irmão, João. João, por sua vez, chamou André. E André trouxe o irmão, Pedro. Todos são pescadores. É com os quatro ao seu lado que Jesus começa a construir seu caminho, mas André deseja e consegue se tornar o mais próximo de Jesus.
De acordo com o mito da criação, Deus apoia uma mão na Galícia enquanto dá forma e cores ao mundo sensível. Um dia, Jesus e Pedro fazem uma expedição ao exato lugar onde Deus pousou a mão, e chegam a Teixido, encontram uma terra árida e quase sem vida. Pedem ao Pai que mude aquela situação, pois ali será erguida uma igreja dedicada a um dos seus apóstolos. Deus manda uma vastidão de água, pedras e muito verde, e André pede que a igreja seja dedicada a ele. Porém, com o passar do tempo, André vê hordas de peregrinos reverenciar Tiago, em Compostela, e só gatos-pingados aparecem para saudá-lo. Reclama com Jesus. O Filho, então, faz uma promessa ao mimado André, a partir daquele dia, todo o habitante da terra passará pelo seu santuário, em Teixido. De que forma? Se não for em vida, irá três vezes na morte. Como? Encarnado em um ser vivo, borboleta, aranha, calango, mosquito…
O Caminho Inglês, saindo de Ferrol, nos seus 4 km iniciais, é compartilhado entre André e Tiago. Enquanto a setinha amarela e a concha da zamburrinha indicam para Santiago, o peixe e uma seta vermelha indicam para Teixido. Se soubéssemos de história tão rica e Caminho tão belo, teríamos reservado mais tempo para percorrer os 50 km a pé de Narón a Teixido. Paciência, fica para a próxima.
Seguimos a seta amarela e chegamos a Hospital de Bruma. Diante do belo prédio milenar, reformado, que serve de albergue, dezenas de peregrinos aproveitam o bom tempo para estender roupas recém-lavadas. Outros bebem e confraternizam. Ao nos ver se aproximar, um peregrino corre a informar que não há vagas, mas que se andarmos um pouco mais chegaremos a Mesón do Vento, localidade que oferece acomodações, restaurantes, mercados etc.
Nossa opção, no entanto, é conhecer Ordes, onde já temos reserva no Alda Hotel. Inspirados na técnica do catalão Francisco e sua cadela Mossa, o vai e volta, pedimos para a funcionária do albergue chamar um táxi para nos levar a Ordes, que se encontra a 12 km, 13 minutos de carro. Ali, depois de um bom banho, seguimos para uma ótima pulperia e comemos, além de pulpo (polvo), camarão, zamburrinhas, tomamos cerveja, nos presenteamos com o melhor da culinária galega. No dia seguinte, o mesmo taxista nos leva de volta ao albergue para retomarmos a caminhada. A boa notícia, dada pelo próprio taxista, é que os 40 km que faltam para Santiago são de declives, mas uma bruma densa e uma chuvinha fina assusta, sem contar o frio, que nos obriga a usar pulôver por baixo da blusa corta-vento por todo o dia. Desprevenidos, somos os únicos sem capa de chuva.
A quinta etapa promete ser a mais difícil, mas vamos em frente. Aguardem!
Fotos: Arquivo pessoal