Asilo de idosos: a estação final de uma trajetória marcada por indignidades!

Escrevo sob o impacto de mais uma visita que realizei a um asilo de idosos no interior de Minas. Não citarei nem o nome da cidade, nem o asilo, pois a situação encontrada é representativa, com alguma variação, de outras, não apenas em Minas Gerais, mas em quase todo o Brasil, não somente nas localidades mais distantes dos grandes centros urbanos, mas, também, nas capitais. Foi o que constatou a Caravana aos Asilos realizada por iniciativa dos Deputados Marcos Rolim e Padre Roque, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal.

Tomiko Born

 

Tive oportunidade de integrar essa Caravana na cidade de São Paulo e li seu relatório final onde está descrito de maneira pungente o quadro encontrado (Uma amostra da Realidade dos abrigos e asilos de idosos no Brasil. Brasília, março de 2002).

Sou assistente social formada em 1956, com uma longa trajetória de lutas. Iniciei meus trabalhos com idosos em 1976, numa organização mantenedora de um asilo ou uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), como passamos a denominá-lo nos últimos anos, nos meios gerontológicos. Membro da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Seção São Paulo, fui convidada para coordenar a Comissão de Assessoria Técnica a Instituições de Longa Permanência e mais tarde pela SBGG nacional para coordenar o Fórum Nacional de Instituições de Longa Permanência para Idosos, o qual deverá reunir-se mais uma vez durante seu Congresso Nacional a realizar-se em junho próximo, em Salvador.

Conheço um grande número de ILPIs em diversas regiões do Brasil. Algumas são de padrão comparável ao dos países mais ricos, com instalações adequadas e dispondo de uma equipe multi-profissional, com formação gerontológica, desenvolvem um satisfatório programa de atendimento aos idosos. Nestas ILPIs são consideradas as dimensões biopsicosociais do envelhecimento e respeito à individualidade e à privacidade do idoso. Outros são meros depósitos de velhos, onde falta de tudo. São antecâmaras da morte, onde os idosos são cadáveres ambulantes, utilizando a forte expressão de Simone de Beauvoir.

Freqüentemente, sua população é heterogênea, tanto em idade, como em condições de saúde. Encontram-se deficientes visuais, mentais, psicóticos com diagnóstico de esquizofrenia, psicóticos com outros diagnósticos, pessoas com quadro demencial, pessoas de 40 a 50 anos com seqüelas de AVC, alcoolistas. Algumas vezes, um grande número de afro-brasileiros. Outras vezes, vários irmãos da mesma família, todos deficientes mentais.

A visita que motivou este relato é a terceira que realizo em cidades do interior mineiro. Foi feita num sábado por volta de 17 horas. A entidade é filantrópica e é mantida com verbas que recebe do Governo Federal, da Prefeitura e dos benefícios dos residentes, os quais representam 50% do orçamento mensal. A comunidade local colabora com gêneros alimentícios e com contribuições em dinheiro. Suas despesas mensais são de aproximadamente vinte mil reais, dos quais oito mil vão para o pagamento de 22 funcionários. Destes, 10 são cuidadores de idosos. O salário pago ao cuidador é o mínimo. São 56 residentes, aproximadamente a mesma quantidade de homens e mulheres. Há 10 pessoas com idade inferior a 60, variando de 18 a 40.

O asilo não consegue recusar os pedidos insistentes da comunidade para internar todo tipo de pessoas, especialmente aquelas com distúrbios psíquicos ou deficiência mental, pois não há no município nenhum outro serviço de saúde ou de assistência social para essas pessoas. Como exemplo, o presidente mencionou um pedido para a internação de uma mulher casada de 30 anos, deficiente mental. Não a aceitou porque é casada. Se vier a enviuvar, poderá ser aceita. Nas duas instituições que havia visitado anteriormente, constatei situação semelhante: cerca de 40% tinha idade inferior a 60.

Percebe-se que a motivação do presidente é fazer caridade, entendido como dar abrigo, roupa lavada e alimento e alguma assistência médica. O presidente, que ocupa o cargo há cerca de um ano, é um militar reformado, que dirige a instituição com grande empenho, fazendo-se presente, quase todos os dias no asilo. Sua esposa também colabora. No momento da visita estava sozinha na cozinha, limpando frango para preparar o almoço beneficente que seria realizado no dia seguinte.

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O edifício foi construído num terreno em declive e é de dois pavimentos: o térreo onde fica a ala feminina e o pavimento inferior onde dormem os homens. As instalações são velhas e sem manutenção, os quartos escuros, alguns em total escuridão, especialmente naqueles do nível inferior, onde havia idosos acamados. Eram poucos os sanitários e sem barras de apoio; como acontece em muitas instituições, não havia tampo nos vasos sanitários. Havia corrimão nos dois lados do corredor, um ponto alto, contrastando com os aspectos gerais. Notei ausência de flores, plantas, pássaros, decorações que pudessem amenizar o ambiente.
Havia muitas idosas descalças. Uma idosa chorava, outra mostrava rancor contra uma colega, mas, no geral, o clima era de grande apatia.

Quase não se viam funcionários. Além dos dez “cuidadores” há apenas um “prático” de enfermagem. Não há assistente social. Um “auxiliar” de fisioterapeuta trabalha duas vezes por semana e o médico, uma vez por semana. Casos de emergência são atendidos na Santa Casa e o transporte do idoso é feito em táxi, pois a instituição não dispõe de carro próprio.

Quase todos os idosos são “incontinentes”, segundo o presidente. Pode-se imaginar que as possíveis causas da incontinência não foram investigadas e, conseqüentemente, os casos tratáveis não foram tratados. Por motivos de ordem econômica, nem todos recebem fraldas descartáveis, sendo usadas, também, fraldas de pano. Não pude deixar de pensar na humilhação e desconforto dos idosos e na incidência de infecção urinária, especialmente nas mulheres.
Não há prontuários individuais e a instituição parece não ter sentido necessidade.

Além da sala da fisioterapeuta, as duas melhores instalações são a lavanderia industrial (que lava 25 quilos em cada lavagem) e a rouparia onde as roupas estavam dobradas e guardadas em grande ordem. As roupas não são individualizadas e os idosos recebem roupas para troca, conforme o seu tamanho, sem nenhuma opção pessoal.

Em certo sentido, não seria possível falar em violência contra idosos numa instituição como a visitada. Não uma violência praticada deliberadamente contra os residentes. Contudo, toda a situação é de violação dos direitos humanos. E nem podemos culpar o presidente da instituição, nem os “cuidadores”. A responsabilidade é de uma sociedade que vem mantendo uma parcela de sua população em condições de indignidade e reserva para os seus últimos dias, apenas migalhas das suas mesas. É o estado que fecha os olhos para essa situação, pois os idosos não podem fazer rebelião como os menores da Febem ou os presidiários, os Sem Terra, ou Sem Teto. Fico imaginando como será trabalhar com aqueles idosos em situação de tanta degradação?

Muitos profissionais de saúde, muitas autoridades acreditam que seguindo o movimento antimanicomial, devemos propor o fechamento de asilos. Para começar, tem se verificado que esse movimento, embora, em princípio, merecedor de todo o apoio da sociedade, quando não organiza programas adequados de apoio à família e de equipamentos sociais, acaba transferindo para os asilos os problemas que se empenha em solucionar.

O Brasil não está preparado para os problemas decorrentes do envelhecimento. As leis maravilhosas ainda não passaram do papel. Se pensarmos no país como um todo, podemos afirmar que são inexistentes os programas não asilares de atenção ao idoso, que poderiam diminuir a necessidade de internação. Devido à falta destes programas e a precariedade da rede de Assistência Social, verificamos que todos os problemas que a comunidade não consegue resolver são encaminhados aos asilos. Estes viram um tipo de quarto de despejos. É uma situação que nos lembra o tempo da Lei Elisabetana dos Pobres, na velha Inglaterra.

O próprio asilo, que queremos transformar em Instituições de Longa Permanência para Idosos, requer uma nova compreensão pela sociedade e pelos profissionais de Saúde e de Assistência Social. Para começar, não podemos ignorar que o envelhecimento populacional no Brasil realiza-se de forma peculiar, num ritmo acelerado e sem que tenhamos conseguido equacionar os problemas fundamentais do país e, ainda, num contexto de enormes transformações sociais, das quais merecem ser mencionadas a urbanização crescente e as mudanças na estrutura da família.

É diretriz da Política Nacional do Idoso a “priorização do atendimento ao idoso através de suas próprias famílias, em detrimento do atendimento asilar, à exceção dos idosos que não possuam condições que garantam sua sobrevivência”. No entanto, essa diretriz não leva em conta nem as mudanças na estrutura da família, nem o aumento dos idosos dependentes. É uma realidade vivida por Instituições de Longa Permanência para Idosos o aumento de pedidos de internação de idosos com alta dependência, sobretudo os casos de demência. Necessitamos, urgentemente, aprender dos países com longa experiência no atendimento aos idosos em ILPIS. Temos de construir uma rede de serviços aos idosos na comunidade, hierarquizar os pedidos de internação de idosos e estabelecer prioridades. Um estudo criterioso nos nossos asilos, provavelmente irão identificar tanto os residentes não-idosos, como aqueles que deverão ser encaminhados a serviços de saúde, além de outros que poderiam ser atendidos em sistema residencial tipo casa-lar. No entanto, isto significa que paulatinamente aumentará o ingresso de idosos mais dependentes nas ILPIs, uma tendência que já se verifica em alguns centros urbanos do Brasil.

O aumento de idosos dependentes e com necessidades especiais, torna complexo o seu atendimento nas ILPIs, pois não basta proporcionar-lhes abrigo, alimentação, recreação e encaminhamento para cuidados médico-hospitalares, quando necessários. Por isso, não se pode pensar apenas num programa de assistência social. Não podem faltar dieta adequada, os cuidados diários de enfermagem e todos os programas que promovam e mantenham a autonomia do idoso, além da criação de um ambiente adequado e seguro para o idoso dependente. Temos defendido que a ILPI é uma moradia, mas uma moradia especializada. Por isso, achamos apropriado o emprego da expressão, que se encontra na literatura internacional: serviço de natureza híbrida ou mista, médico-social, onde se conjugam os serviços de assistência social e de assistência à saúde. É um atendimento que exige uma equipe multi-profissional e com preparo básico em Gerontologia.

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