As tecnologias, o envelhecimento e a qualidade de vida

As tecnologias, o envelhecimento e a qualidade de vida

A tecnologia não exime a história humana de suas contradições, e até mesmo as manifesta, quanto mais esteja incorporada aos meios de vida.


O advento de tecnologias tem sido apontado como um dos principais vetores responsáveis pelo aumento da expectativa de vida e, consequentemente, do envelhecimento populacional, já que facilita a prevenção de doenças, e tem despertado a atenção da sociedade, passando a ser também um alvo consumidor importante para os interesses do mercado capitalista. Aparece em quase todos os artigos científicos e de divulgação escritos do país que falam sobre o processo do envelhecimento e velhice em si. Não poderia ser diferente na revista mais60 do Sesc São Paulo (chamada anteriormente de A Terceira Idade), que no v. 26. n. 63 (2015, p. 35)os autoresPenatti e Gobbo indicam que o aumento da população idosa se deve a diversos fatores, entre eles os avanços da tecnologia e da ciência, “que fazem com que novos medicamentos estejam no mercado a cada dia, o que colaborou com a redução da mortalidade por doenças infectocontagiosas”. Na mesma edição, Rizzon reconhece a sociedade atual como “moderna com organização e tecnologias sofisticadas” (p. 105), dando lugar ao que ainda está em nossa mente como tecnologia, isto é, ferramentas que se aprimoraram para resolver problemas de um passado de caça e coleta de alimentos, depois como tecnologias de produção e manutenção corporal, comunicação… possibilitando melhor qualidade de vida.

O debate sobre as tecnologias e a qualidade de vida vem de muito tempo. Já em 1999, exatamente há 20 anos, Mário Sérgio Cortella, na Assembleia Nacional de Idosos promovida pelo Departamento Regional do Sesc São Paulo, falou sobre a “Globalização e Qualidade de Vida”. Essa assembleia reuniu cerca de 1.400 idosos, organizados em delegações, representando todas as regiões do território nacional. Cortella, em sua conferência, falou sobre tecnologia e envelhecimento, colocando na época as seguintes questões:

O erro está na televisão? Não. Televisão é uma coisa maravilhosa, informa, distrai. O erro está na tecnologia que nos faz correr? Não. O erro está na concepção, no modo que entendemos a qualidade da nossa existência. Não são apenas os idosos que vivem assim. São gerações que estão vivendo desse modo, sem que a gente dê uma parada e fale: basta. Tecnologia é ferramenta, não é finalidade. Aparelho eletrônico é para melhorar a vida coletiva, e não para isolar as pessoas cada vez mais”. (p. 69)

Passados 20 anos, parece que as questões colocadas por Cortella continuam em pauta, apesar da tecnologia ter avançado muito mais e barateado muitas de suas parafernálias. Se há 20 anos Cortella assinalava que “nos últimos 50 anos, houve mais mudança na tecnologia do que nos 39.950 anos anteriores. E nós nos perdemos muito nisso” (p. 71), imaginem agora em 2020, passados exatamente 70 anos? Toda uma vida. Nos interessa aqui a reflexão feita por ele na qual ele narra que “Hoje, com a tecnologia à disposição, tem gente que, para ir à padaria que fica a três quarteirões de casa, é capaz de tirar o carro da garagem e ir de carro. Como é que alguém desloca duas toneladas de ferro para buscar 100 gramas de pão? E chamamos isso de conforto!”. Cortella reconhece que a tecnologia é resultante de uma nova organização do mundo e de um sistema de integração econômica tão forte entre os principais países, que todo mundo depende de todo o mundo, “só que os poderosos continuam poderosos”, esclarece Cortella (p. 74).

Nessa mesma edição consta o artigo Tecnologia e Meios de Comunicação trazendo as principais ideias apresentadas por grupos de idosos, entre elas a que a tecnologia, por si só, não é vilã nem heroína. Ela oferece novos meios de relacionamentos com o cotidiano, mas não é isenta de valores nem é amoral. O homem a constrói. Na ocasião os idosos fizeram as seguintes indagações: o homem constrói tecnologia e emprega para que e para quem? Qual é o novo sentido existencial de que a tecnologia é portadora? Que transformações a tecnologia provoca no comportamento das pessoas?

Passados 20 anos e com o avanço das tecnologias, especialmente as comunicacionais, várias destas questões continuam sem respostas, outras, no entanto, já sabemos quais respostas daríamos. O interessante é vermos no editorial da última edição da revista mais60 com destaque para a Gerontecnologia, escrita pelo diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, assinalar que “A tecnologia sempre esteve inexoravelmente ligada às dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais, bem como às modelações da ordem da subjetividade e da própria esfera pública”. Miranda reconhece que hoje, no entanto, os dilemas de conviver são muitos, “não só com algoritmos, big data, aprendizado de máquinas, bioinformática, edição genética, longevidade, reconhecimento facial, geolocalização onisciente, redes sociais e hiperconexão, mas também com a desigualdade social, violência, degradação ambiental, analfabetismo funcional, terrorismo, falta de saneamento básico, miséria e pobreza”. Tudo isso para dizer que a “tecnologia não exime a história humana de suas contradições, e até mesmo as manifesta, quanto mais esteja incorporada aos meios de vida”.

Por isso reproduzimos aqui o que muitos idosos, lá atrás, em 1999, já haviam proposto: “É imprescindível hoje, que os idosos se juntem aos outros segmentos da população brasileira na luta pela utilização dos avanços tecnológicos a favor dos interesses da maioria dos cidadãos de todas as idades. De modo que a tecnologia possa gerar qualidade de vida, traduzida em conforto, desenvolvimento cultural, independência pessoal e participação comunitária, ao invés de desemprego e exclusão social (p. 112).

E para isso voltamos a Cortella, que ao final de sua fala, lá em 1999, traz o teólogo, músico, filósofo e médico europeu Albert Schweitzer, que recém-formado e com uma brilhante carreira na Europa, resolve ir para a África a fim de trabalhar com pessoas carentes ficando por lá cerca de 50 anos, e que disse o seguinte: “A tragédia do homem é o que morre dentro dele, enquanto ele ainda está vivo”. E o que não pode morrer? A esperança, a recusa à ditadura dos fatos. Não pode morrer a rebelião contra aquilo que parece não ter alternativa (p. 82). Ou seja, lutemos para que de fato a tecnologia seja acompanhada por um desenvolvimento social, que traga qualidade de vida para todos, especialmente para nossas velhices, para que elas sejam mais dignas em 2020!

Referências
A TERCEIRA IDADE. Tecnologia e Meios de Comunicação. São Paulo, A Terceira Idade,Ano X,  Número 17, agosto de 1999.
CORTELLA, Mário Sérgio. Globalização e Qualidade de Vida. São Paulo. A Terceira Idade, Ano X,  Número 17, agosto de 1999, p. 69.
MIRANDA, Danilo Santos de. Gerontecnologia: oportunidade para a ação socioeducativa no envelhecimento e na longevidade. São Paulo. mais60 – Estudos sobre Envelhecimento, Volume 30, Número 74, agosto de 2019.
PENATTI, Vanessa Valério e GOBBO, Luís Alberto. O impacto dos treinamentos com pesos, aeróbio, de flexibilidade e de equilíbrio na aptidão funcional e qualidade de vida dos idosos. São Paulo.A Terceira Idade, v. 26. n. 63, dez de 2015, p. 35.
RIZZON, Sérgio Luiz Lugan. Como a mente funciona. São Paulo: mais60 – Estudos sobre Envelhecimento, Volume 26 | Número 63 | Dezembro de 2015, p. 105.
SIMÕES, Júlio Assis. Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo.São Paulo. mais60 – Estudos sobre Envelhecimento, Volume 22, Número 51, 2011.

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A revista  é uma publicação multidisciplinar, editada desde 1988 pelo Sesc São Paulo, de periodicidade quadrimestral, e dirigida aos profissionais que atuam na área do envelhecimento. Tem como objetivo estimular a reflexão e a produção intelectual no campo da gerontologia, seu propósito é publicar artigos técnicos e científicos nessa área, abordando os diversos aspectos da velhice (físico, psíquico, social, cultural, econômico etc.) e do processo de envelhecimento.
ISSN 1676-0336
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Beltrina Côrte

Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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