As horas e o tempo da praça

O relógio foi colocado lá com a obrigação de contar o tempo em horas e minutos, mas não consegue: marca um tempo diferente


A Praça Ferreira tem vida e morte próprias, possui a boca do mundo, ouvidos do universo e, mesmo não sendo apocalíptica, os olhos do final do mundo. Na praça encontra-se o maior relógio de quatro faces de Fortaleza, ele está ‘escastoado’ no topo da coluna que se ergue bem ao seu centro, a Coluna da Hora. O relógio foi colocado lá com a obrigação de contar o tempo em horas e minutos, mas não consegue: marca um tempo diferente do que foi inventado pelos homens, os ponteiros contam histórias coerentes e badalam-se minutos e horas que falam de saudades e das vidas nunca esquecidas, prazeres, protestos e liberdade.

A praça de muitas bandeiras, protestos, reivindicações, lutas, lágrimas e conquistas, mas alheia ao universo fascista, totalitário. Praça dos Caras-Pintadas no decorrer do ano de 1992, vendedores de flores e “fora presidente”. Suportou e protestou na ditadura de Getúlio Vargas entre o período de 10 de novembro 1937 até 29 de outubro de 1945. Outra! Sim, outra ditadura desde 31 de março de 1964 até 15 de março de 1985, a essa não suportou.

Na segunda metade da década de 1960 a praça tombou a pressão da ideologia radical, os tratores demoliram muitas décadas da cidade, milhares de encontros foram cancelados, as vaias estavam proibidas, os sussurros, recomendavam-se a comunicação. A “nova” praça construída, proibiam-se os encontros e, as histórias seriam contadas e criadas sob o sol, por não haver bancos confortáveis para sentar-se à sombra e sem o Abrigo para parlamentar. 

Por haver sido construída de aço, pedras e concreto o tempo não passa nem fica na Praça. Psicótica, também provoca dores espirituais e saudades; racionalista controla as almas que lhes aparecem, engana as que desapareceram, torna-se impossível tocá-la para modificar sua lógica mesmo a última tentação de demolição definitiva. Nada consegue abalar sua estrutura: ela é atemporal.

É na praça onde fica o “parlatório” da cidade, fazem-se movimentos livres, artísticos, políticos, anarquistas e literários. Casuística e, sem referências poéticas, acadêmicas ou com grandes pretensões históricas. Ela é a história da Fortaleza alegre, acolhedora e brincalhona. Irreverente ela ri e, “canalhamente” vaia tudo e todos – é a praça moleque, racionalista e empirista. Deverá ser iluminista.

Chora a solidão, e vai às alturas em pernas de pau, descontrola-se em risadas à chegada dos gritos dos vendedores de alimentos em carroças e bicicletas, dos endiabrados carrinhos de rolimã. Abriga solitários, vazios, esquecidos, alcoólatras e os nada, entristece com eles e, aplaude quem, mesmo sem voz, canta, tocadores de rabeca, pandeiristas, emboladores e cordelistas que comercializa a sobrevivência. Expande o céu aos que não enxergam, não oram, alarga as passagens aos que não sabem da existência da luz. Finge ser cama para os sem nada e, conseguiram falsificar a data marcada para morrer, aumentando a sensação de não se encontrarem sozinhos no mundo.

Carinhosamente acolhe a todos que ali chegam, abençoa os que saem e, amaldiçoa aos que acham que, a praça é opção legítima de moradia aos que tiveram suas casas “destruídas” por regras econômicas, políticas equivocadas e agora somam-se as estatísticas crescentes dos sem teto. Acolhe com mesmo carinho, os que oram e louvam, mesmo por razões “concretas e materiais’, a deuses capitalistas e materialistas que cobram para salvação da vida pós terra. A Praça, com muito mais carinho “abraça” os que em silêncio só existem e, por saberem e perceberem a ausência do presente, acertam, por não acreditarem na existência do futuro.

Debocha quem aplaude ou nega a demolição física e histórica para tentar apagá-la, por ser cultural, romântica, moleque muito política. Respeita aos que a transformaram em poesia e fotografia para torná-la imortal outra vez. Corajosa e imponente, a Praça do Ferreira ainda dita as regras das ruas do entorno e anseios da cidade, com coragem fala dos seus desejos, rir dos pecados e, atrevidamente, esnoba sua beleza mesmo precisando de um retoque na maquiagem. Preserva em segredos milhares de histórias, umas duas ou três minhas, outras infinitas de todos nós, certamente.

Do alto da Coluna da Hora, o mais soberano de todos os relógios da cidade espia cada um que chega, sai, para e corre – baliza quem voa. Por piedade ou penitenciando aos que habitam ali, aos seus pés, os ponteiros transfixam as almas quando marcam 18h, finaliza mais um dia. Inicia-se a noite, agora, expandem-se as alamedas para caber mais trapos e papelões para confortar mais moradores que chegam por toda a noite. Sem importar as horas, um ou outro morador conta as “badaladas” do relógio para lembrar o começo de mais uma noite de um dia que não passou. Eles não passam mais e, o relógio ainda não se deu conta.

Não perca nenhuma notícia!

Receba cada matéria diretamente no seu e-mail assinando a newsletter diária!

Das alturas, o relógio também marca um tempo diferente a cada um que vive na Praça. Para outros, os ponteiros agora mais rápidos expulsam visitantes deste lugar repleto de mistérios e assombrações, de homens e mulheres e crianças com a mesma expressão facial, a mesma cor, mesmo caminhar: o mesmo cheiro, a mesma fome seguem e em fuga ao massacre, a revanche da vida, sem olhar para trás. O relógio de quatro faces não marca mais o tempo de quem passou e, por vários motivos nunca mais poderá voltar. Nem seus “inquilinos” que tomam seu abrigo, sombras e recantos. Aos jovens e trabalhadores, os ponteiros correm a velocidade sempre inferior ao tempo que ele deveria com presteza, marcar. Sempre devendo horas, para eles é tempo que não passa nunca.

Nos bancos de madeira, formando uma longa linha, idosos que passaram dias, anos e décadas a reclamar da baixa velocidade do tempo, agora parados descansando da alta velocidade que o tempo, agora, impõe. Dias continuam exatamente iguais mesmo a cada amanhecer. Pedem clemência ao poderoso e senhor de quatro faces contador irresponsável das horas, não há. Ele segue, roubando minutos de cada um dos vivos para doar aos recém-chegados outra vez, aqui a Terra. É assim que conseguimos enganá-lo.

Fotos: arquivo pessoal


https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/produto/mini-curso-online-introducao-ao-acompanhamento-terapeutico-no-envelhecimento/

Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

Compartilhe:

Avatar do Autor

Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

Alcides Freire Melo escreveu 18 posts

Veja todos os posts de Alcides Freire Melo
Comentários

Os comentários dos leitores não refletem a opinião do Portal do Envelhecimento e Longeviver.

LinkedIn
Share
WhatsApp
Follow by Email
RSS