O amor e a paciência tornam-se elementos chave para a qualidade de vida tanto da pessoa com Alzheimer quanto do cuidador.
O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa que provoca perdas progressivas da memória, das funções cognitivas e da autonomia da pessoa. Essa condição afeta não apenas quem a vive, mas também as relações que sustentam, exigindo uma transformação na forma como o amor e o cuidado são vividos.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o impacto do Alzheimer nas relações interpessoais é profundo, pois a progressiva deterioração da memória dificulta a comunicação e altera as dinâmicas afetivas (OMS, 2023). Nesse contexto, o amor se manifesta muitas vezes de formas distintas, marcadas pela paciência, pela dedicação constante e pela capacidade de estar presente mesmo diante do esquecimento.
De acordo com o Ministério da Saúde do Brasil (2022) o cuidador, muitas vezes um familiar próximo, passa a desempenhar um papel essencial, não apenas na assistência física, mas no suporte emocional, onde o vínculo afetivo é testado e reafirmado diariamente. Estudos da Alzheimer’s Association indicam que o amor e a paciência tornam-se elementos chave para a qualidade de vida tanto da pessoa com Alzheimer quanto do cuidador.
O site Desenrola e Não Me Enrola tem se dedicado a registrar e divulgar contextos periféricos com sensibilidade e profundidade, trazendo à tona histórias que falam de amor em sua complexidade, longe dos estereótipos e dos centros de poder.
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Entre olhares, sonhos e silêncios compartilhados, alguns amores amadurecem com o tempo, outros desafiam normas desde o início. Na trajetória de vida de pessoas como Expedita e Francisco, o amor aparece como escolha, resistência e cuidado, mesmo diante de desafios como o Alzheimer.
Quando o amor vem do sonho
“Nós nos conhecemos olhando um para o outro, dando um sorriso, dizendo que a coisa estava bem boa e que podia ficar bem melhor. Eu morava em Exu, no Pernambuco, e ele também, mas Francisco veio do Ceará”, conta Expedita Maria de Morais, 89, enquanto ajeita Francisco Germano de Morais, 85, no sofá da sala.
Ela conta que três dias após se conhecerem, começaram a namorar. “Foi rápido, mas esse nosso amor vem de longe. Bem longe”, compartilha Expedita, que gosta de conversar, diferente de Francisco que é mais calado e inquieto, por conta do avanço do Alzheimer.
Com a trilha sonora de Luiz Gonzaga, artista que embalou a juventude do casal, tocando baixinho na rádio em Pernambuco, Dona Expedita compartilha que tudo começou com um sonho quase inexplicável. “Antes da gente se ver pela primeira vez, eu já tinha visto ele num sonho meu. Cheguei a ver ele todinho. No sonho vi que estava sentado, depois escrevendo e o resto já não me lembro mais”, relembra.
A aposentada conta que durante esse sonho, Francisco lhe entregou um bilhete e depois desapareceu. “Eu cheguei a sonhar ainda mais três vezes. Depois dessa terceira vez eu encontrei com ele e lembrei: é o rapaz do sonho. Dali pensei na gente ficar junto a vida inteira. Eu conheci a família dele no mesmo dia.” Pouco mais de um ano depois, o casal se casou, ainda em Pernambuco.
“Quando se ama assim, de verdade, o amor não termina, ele é o mesmo, mas a gente tem que ter paciência”, diz Dona Expedita Maria de Morais, 89, dona de casa, aposentada e moradora do Jd Arco-Íris, município de Diadema, São Paulo.
Respeito, admiração, presença, dedicação, cuidado e paciência são algumas características que Expedita cita na construção do amor quando pensado na perspectiva da relação com o outro. “Agora ele está nesse estado, doente, mas eu gosto dele, eu ainda o amo. Eu e ele vamos continuar até o fim da vida. Não sei quem vai primeiro, se é eu ou se é ele, mas enquanto eu não partir, enquanto Deus não me levar, nós estamos juntos”, conta.
Dona Expedita, assim como muitas mulheres que são a base do seu núcleo familiar, se preocupa com as dificuldades de todos ao seu redor e entende que existem diferentes formas, ritmos e configurações de afetos. Ela ressalta que toda ternura aparente de um casamento, por si só, não isenta das dores reais que existem. Isso inclui lidar com a rotina, com o envelhecer e as mudanças que o tempo provoca.
“Amo Francisco, mas [confesso] que quando ele começou [a piorar do Alzheimer], eu senti medo sim. Até hoje sinto. Ainda hoje sinto que é pesado pra gente estar aqui vivendo essa vida assim [com ele dependendo de mim e de outras pessoas]. A gente ainda está junto, mas não podemos estar só nós dois juntos como era no tempo que começamos [a nossa história]”, reflete Expedita sobre a influência do tempo e do Alzheimer nas construções de afeto enquanto casal.
Com 65 anos de relação, ela compartilha sobre as mudanças ao longo dos anos. “Aquele tempo da gente novo, nem se compara como é agora com a idade que temos, mas ainda assim a gente tem aquele prazer de estar os dois velhinhos juntos. De todo jeito, eu queria que ele pudesse andar, ficar bem para os dois juntinhos andar, dar um beijos, sair pra passear, nem que fosse aqui pela rua mesmo, só nós dois, porque era tão bom”, conta com tom de saudade.
A história de Expedita e Francisco revela com honestidade que o amor, por mais profundo que seja, não elimina as dificuldades enfrentadas diante do Alzheimer. A doença modifica rotinas, redistribui papéis e impõe um novo modo de convivência, marcado por dependência, cansaço e, muitas vezes, medo.
Expedita fala do amor com firmeza, mas também admite o peso da responsabilidade, a saudade do que foi e a dor de ver seu companheiro partir aos poucos, mesmo estando ali. Ela segue presente, mesmo quando a presença do outro já não é a mesma. E é justamente essa contradição que nos faz compreender o quanto o cuidado é uma forma de amor que exige força, paciência e, sobretudo, realidade.
O vínculo entre os dois permanece, mas se transforma. Já não é o mesmo da juventude e nem poderia ser. Ainda assim, resiste. E essa resistência não se dá apenas por afeto, mas por escolhas conscientes, por memória, por história e por compromisso com a dignidade daquele que um dia esteve inteiro e hoje precisa ser amparado.
Amar alguém com Alzheimer é, muitas vezes, vivenciar o luto antes da perda. Mas também é continuar afirmando que a vida vale ser compartilhada, mesmo quando a memória falha. E que o amor, mesmo não resolvendo tudo, ainda é um dos pilares mais potentes do cuidado.
Referências
ALZHEIMER’S ASSOCIATION. Alzheimer’s Disease Facts and Figures. Disponível em: https://www.alz.org/alzheimers-dementia/facts-figures. Acesso em: 30 jul. 2025.
MINISTÉRIO DA SAÚDE (BR). Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em:https://www.gov.br/mds/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/antigos/portaria-ms-no-2-528-de-19-de-outubro-de-2006. Acesso em: 30 jul. 2025.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Dementia. Geneva: WHO, 2023. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/dementia. Acesso em: 30 jul. 2025.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Instituto de Geriatria e Gerontologia. Estudos e pesquisas sobre envelhecimento e demência. São Paulo: USP. Disponível em: https://www.gero.usp.br. Acesso em: 30 jul. 2025.
UNITED NATIONS. Department of Economic and Social Affairs – Ageing. Disponível em: https://www.un.org/development/desa/ageing. Acesso em: 30 jul. 2025.
(*) Texto escrito sob orientação de Beltrina Côrte, CEO do Portal do Envelhecimento. E-mail: beltrina@portaldoenvelhecimento.com.br
Foto de Leish/pexels.com
