O filme traz a história de uma mulher que se reconstrói, se levanta, e continua na luta por si e por uma sociedade mais justa.
Desde que me conheço por gente, os temas relacionados à ditadura sempre tiveram eco em mim. Vinda de um casal de pai músico, com uma base intelectual invejável e em constante construção e mãe pedagoga, formada pela USP, que se conheceram em Brasília, quando ela ia assistir às apresentações da orquestra universitária, em que ele tocava. Lembro das histórias – como as do filme em questão – que contavam sobre sua juventude e da interferência do regime em suas vidas, mesmo não sendo pessoas efetivamente militantes, segundo as palavras de minha mãe.
Ela por duas vezes perdeu o emprego, uma por ter se envolvido, em 1968, em uma manifestação na Universidade de Brasília, onde era instrutora assistente, em uma greve contra a demissão de alguns professores. Tal movimento levou à demissão em massa de mais de 200 profissionais da instituição, entre eles pessoas de renome e projeção em sua área de atuação, como o antropólogo Darcy Ribeiro. Outra vez, em 1969, quando atuava em uma das escolas do Colégio Vocacional, na cidade de Rio Claro, interior do estado de São Paulo. Uma experiência pioneira de ensino, que incluía o estudo do meio, as discussões em aula e construção coletiva do conhecimento, fechada pelo governo. Dois momentos marcantes da intervenção militar na história da educação no país, como fui entender mais tarde, para além do círculo da pauta dos assuntos domésticos que ouvia na infância.
Em suas narrativas, recordo também da menção a sua formatura, em que, segundo ela, só restou a senhora que servia café. Era uma fala em sentido figurado, pois o paraninfo se autoexilou, a oradora se recusou a participar, ao saber que o texto teria que passar pela censura, e o diretor fez um discurso vazio, lendo a lista dos cursos que faziam parte da Faculdade.
Do meu pai, lembro de outras histórias. De como nos contava, como no dia do golpe, em Salvador, onde era estudante, viu as tropas passarem pelas ruas, ao lado do Farol da Barra. De como seu apartamento foi invadido, após a família, residente em outro estado ter ligado para a polícia para pedir informações suas, pois não dava notícias. Dos relatos sobre amigos exilados, desaparecidos e sobre as práticas de tortura cometidas pelo regime. E, também, de participar de algumas reuniões de estudantes em São Paulo, das quais deixou de comparecer, quando começaram a falar em luta armada.
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Ao assistir ao filme Ainda Estou Aqui, essas histórias, que revivo juntamente com a memória dos almoços de família, regados a vinho e longas conversas sobre as mais diferentes coisas do mundo, vieram em enxurrada, acompanhadas de outra lembrança.
Aquela do dia em que levamos um senhor, diziam-me, amigo de um amigo de meu pai, para embarque no porto de Santos. É uma lembrança que vagava no meu imaginário infantil, como uma situação inusitada e única, de uma época em que eu era muito pequena. Lembro de termos trocado o carro, pelo carro que me disseram ser do amigo do meu pai, um fusca terracota e que achei divertido ter ido ao clube com aquele automóvel. Por algum motivo eu gostava do porta luvas. Lembro também que me disseram que se alguém perguntasse, eu deveria dizer que o senhor era meu tio e o adotei como tal. Revejo seu embarque e como acenamos para ele, com entusiasmo, enquanto caminhava para entrar em um imenso navio e penso em como eu sentia como se ele fosse realmente um familiar que partia.
Foi um dia importante na minha vida de criança, pois além de tudo, do carro diferente, da viagem, do navio e do tio postiço que rumava, sabe-se lá para onde, ainda vimos um polvo em cima de um muro que terminava na areia da praia. Nunca mais vi um polvo em cima do muro, mas por muito tempo brinquei com um passaporte deixado pelo tio em nossa casa, sem nunca ter me dado conta do que significava ter a posse daquele documento.
Ainda Estou Aqui reavivou em mim essas memórias. Tenho acompanhado a repercussão do filme desde seu anúncio, fui ao cinema no dia de sua estreia no Brasil. Não sei dizer em que estado saí do cinema tamanha minha afetação, mas sei que o filme continua ecoando em mim e, desde então, tenho vontade de falar sobre ele, como vejo acontecer com tantas outras pessoas. Pela primeira vez, sinto assombro ao pensar no que poderia ter acontecido conosco, mas também, nunca tinha sentido a emoção, que emerge das lembranças recônditas da infância, da possibilidade real de termos salvo uma vida.
É um filme tocante, paradoxal. Extremamente triste, ao mesmo tempo que belo. Coberto por momentos de alegria com encontros de amigos, o cachorrinho de rua que se torna da família, a infância à beira mar, o período da adolescência, e isso é o que o torna ainda mais triste. Vemos também a potência de uma família que, mesmo despedaçada se mantém unida. Traz a história de uma mulher que se reconstrói, se levanta. Na ausência do marido, cria seus filhos e continua na luta por si e por uma sociedade mais justa.
Assim, Ainda Estou Aqui é, ao mesmo tempo, um filme sobre a opressão de um Estado que permite a tortura ou massacra, quando deveria proteger os seus, mas também um filme sobre amizade, sobre questões de gênero, resistência e família. É um filme que retoma a necessidade de lutarmos por nossa memória social contra o apagamento da história, trazendo à tona a visão daqueles que de alguma maneira foram oprimidos, minorizados ou destituídos de seus lugares de existência e fala. É um direito é um dever. E por falar de tudo isso, com tamanha delicadeza é que Ainda Estou Aqui é um filme tão necessário.
Ele fecha, com a devida visibilidade, os 60 anos de um golpe, com a maestria dos atores que deram vida aos personagens e uma direção primorosa, característica de Walter Salles, mas permite ir além, ele fala a todos que de alguma forma são afetados pelas vias de um sistema repressor ou pela opressão e negligência ou descaso institucionais.
Tamanha a amplitude de sua abordagem, que saímos do cinema pensando em diferentes faces de nossa vida. No meu caso, são tantas que não cabem nesse texto.
É esse filme que me faz hoje novamente ir ao cinema, agora acompanhada de minha mãe, uma senhora de 93 anos. Estou curiosa por ouvir aquilo que depois ela terá a dizer. Esse é um dos privilégios de se conviver com pessoas longevas, aquele de ter acesso a relatos que só elas podem nos trazer acerca dos momentos históricos que marcaram um país, a partir da riqueza de sua experiência. Essa que nos diz, com propriedade, sobre a influência dos fatos no cotidiano da gente comum, mas que, por outro lado, revela também o extraordinário da vida que habita em cada um de nós.
Sobre o filme
Ainda Estou Aqui filme baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, dirigido por Walter Salles, conta a história da família Paiva, e trajetória de Eunice Paiva, após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva ao ser levado por agentes militares do Estado, na década de 1970. Tem como protagonistas, Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, no papel de Eunice Paiva e Selton Melo, no papel de Marcelo Rubens Paiva, e grande elenco.
O filme teve estreia Internacional no Festival de Veneza, em setembro de 2024, onde foi premiado e ovacionado pelo público, após sua exibição, com grande repercussão internacional. No Brasil estreou em 07 de novembro do mesmo ano, com grande sucesso de bilheteria, alcançando liderança nacional, no primeiro final de semana de sua exibição.
Para saber mais: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ainda_Estou_Aqui
Fotos: Divulgação