Rever os estereótipos negativos da velhice tem um caráter libertador e pode ajudar todos a desenvolverem um envelhecimento ativo e bem-sucedido, assumindo que afetos, amores e sexualidade façam parte dessas estratégias.
Milton Roberto Furst Crenitte (*)
A gerontologia, ciência que estuda o envelhecimento, avançou muito nas últimas décadas sobre o mito da “velhice assexual”, passando a legitimar a inclusão da sexualidade nessa fase da vida das pessoas. Porém, mesmo com todos os esforços dos especialistas, diversas construções sociais ainda privam os idosos do amor, da sexualidade e do prazer. É verdade que com o passar dos anos algumas mudanças fisiológicas ocorrem nos corpos de todos, como a redução de lubrificação vaginal nas mulheres ou o declínio da intensidade do orgasmo nos homens. Porém, são os preconceitos que levam muitos a crer que essas alterações são as principais causas de disfunções na sexualidade.
Nesse contexto, a sociedade brasileira de urologia define a disfunção erétil como a incapacidade de obter uma ereção suficiente e adequada para manter uma relação sexual satisfatória para ambos parceiros. Aqui não cabe uma crítica à definição em si, que está correta. Mas a uma única visão de alguns estudiosos da área da saúde, que também pressionada pela indústria farmacêutica, em olhar apenas para aquilo que seria fisicamente possível.
Ao invés de tentar somente “normalizar”, “operar” e tratar as alterações ditas como “anormais”, é importante que a sociedade discuta as barreiras que limitam a expressão dos afetos e dos amores na velhice. É inegável que algumas tecnologias como o advento do Viagra tiveram e têm benefícios. Entretanto, a geriatria e a gerontologia devem entender os obstáculos do culturalmente possível, a fim de reduzir sofrimentos e angústias nessa fase da vida.
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Em outras palavras, Carole Vance (1991), antropóloga que discute em suas análises sobre a “Teoria de Construção Social”, discorre que a
fisiologia do orgasmo e da ereção peniana explicam tão pouco o esquema sexual de uma cultura quanto o alcance auditivo do ouvido humano explica a música”
Outro questionamento surge nessa linha: sobre o que é e como atingimos o gozo sexual. Dessa forma, por um lado, é preciso entender que a penetração não é a única fonte produtora de satisfação. Por isso, outro debate importante recai sobre a “desgenitalização do prazer”, permitindo que os idosos descubram outras inúmeras zonas prazerosas em seus corpos e que entendam que o mais importante para a expressão da sexualidade não está nos genitais, e sim entre as orelhas: a nossa consciência.
Por outro, também cabe a discussão de que sexualidade não se resume apenas ao ato sexual, indo muito além do que isso. E ao exemplo do amor, existem inúmeras formas para manifestá-la. Pode ser vivida pelo toque, pelo carinho, pelo afeto, pelas relações sociais desenvolvidas ou pela maneira que o indivíduo desejar.
A sexualidade tem pouco ou nada a ver unicamente com ereções e orgasmos, e sim com comunhão, com tocar e se deixar tocar, acariciar e ser acariciada, ter e dar prazer. É só conseguir mudar o padrão de encarar e de atuar, usando formas abertas e receptivas entre si, que se chega ao nirvana nos encontros amorosos.” (FUCS, 1992, p. 94)
Porém, muito desse relevante debate se resume apenas a uma única forma de experimentação, mantendo assim, uma normatividade heterossexual e uma invisibilidade às velhices de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgênero (LGBT).
Infelizmente eles expressam maiores riscos de estarem morando sozinhos, de não terem filhos e de não apresentarem alguém para chamar em caso de uma emergência.
Além disso, algumas questões potencialmente relacionadas com a falta de confiança nos serviços de saúde e com o medo de sofrer discriminação nesses locais fazem com que essas pessoas deixem de procurá-los ou os procurem somente em emergências, e dessa forma, cuidem pior de sua saúde.
Em razão desses argumentos, a discussão sobre expressões de afetos e de amores na velhice também deve se apropriar do que as autoras do movimento feminista produziram no campo dos saberes sobre gênero e sobre opressão sexual.
É interessante notar que se homens idosos têm receio de serem considerados como safados, indecentes ou degenerados por exporem publicamente seus carinhos e desejos, essa situação pode ser ainda pior para as mulheres mais velhas, cujo aprendizado sobre sua própria sexualidade foi pautado por códigos morais mais rigorosos. Por isso, as pessoas idosas sofrem diversas repressões, não só dos mais jovens, mas também de seus contemporâneos.
Dessa forma, resgato o título “O feminismo é para todo mundo” do livro de Bell Hooks, importante ativista do feminismo negro, que em sua obra, resume que o problema não são os homens, e sim o patriarcado, o sexismo e a dominação masculina. Para a autora tais formas de opressão são maléficas inclusive na vida e na construção da autoestima de garotos e de homens, visto que muitos sentem-se perturbados pela natureza de suas identidades.
Ela completa que a visão feminista que adere à masculinidade feminista, que ama garotos e homens e exige, em nome deles, todos os direitos desejados para garotas e mulheres, pode renovar a percepção também do que é ser homem na sociedade.
Assim, esse pensamento pode ser libertador mesmo para os homens idosos heterossexuais. Para eles, há a possibilidade de ressignificar relações na velhice e de se libertar de angústias existenciais que assombram e que questionam o papel masculino a partir da ocorrência da “impotência sexual”.
Ademais, a sexualidade é um assunto que não deve ser um tabu na sociedade. Lembrando que tabus criam preconceitos, os quais produzem violências. E essas geram sofrimento.
Por fim, cabe a reflexão de que rever os estereótipos negativos da velhice também tem um caráter libertador e pode ajudar todos a desenvolverem um envelhecimento ativo e bem-sucedido, assumindo que a sexualidade faça parte dessas estratégias. Nesse sentido, a seguinte citação exemplifica bem essa ideia:
As expressões de afeto, as fantasias, o desejo de ser seduzido e seduzir, estão presentes na vida dos velhos como em qualquer outra etapa da vida, embora nem sempre se apresente da mesma forma. Resgatar o direito a uma vida sexual do velho implica poder pensar o amor em suas formas de transformação libidinal, ou seja, outras formas de amor, que passam pela ternura, pelos contatos físicos que erogenizam o corpo, como o olhar, o toque, a voz, redescobrindo as primeiras formas de amor do ser humano. […] O velho não deixa de amar, mas reinventa formas amorosas.” (SANTOS, 2003, pp. 22-23).
Referências
FUCS, Gilda. (1992), Homens e mulheres: encontros e desencontros. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos.
SANTOS, Sueli Souza dos. (2003), Sexualidade e amor na velhice. Porto Alegre, Sulina.
(*) Milton Roberto Furst Crenitte – Médico geriatra, Graduação e residência pela USP, Doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP (em andamento), professor do curso de medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Diretor de Projetos da Eternamente SOU – primeira organização social voltada para atendimento das Velhices LGBT. E-mail: [email protected].