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Acordes do envelhecer

Maestro com as mãos para cima

João Carlos Martins, em entrevista, fala sobre sua trajetória de vida e seu envelhecer.

“A vida é o direito de se reinventar. Ela pode ser levada com a disciplina de um atleta e com a alma de um poeta.” João Carlos Martins


A música toca a alma. Não é algo tangível, que pode ser tocado, mas é uma sensação vívida. Dar harmonia a isso, é mais do que uma habilidade, mas é sim um dom. Enquanto ouvia o maestro João Carlos Martins, era esse meu Solilóquio¹: Velhices!; Resgate dos sonhos e desejos; Respostas novas a perdas e ganhos da vida; A força da vontade; A energia que move o ser; Adaptação; Desenvolvimento de papéis; Ação; A vida no aqui e agora.

Silmara: João Carlos, nesta trajetória onde você celebra 75 anos de uma brilhante carreira e 83 anos de vida, conseguiria nos contar um pouco de como chegou até aqui?
Maestro João Carlos: A frase que sempre digo é a seguinte: ‘Você corre atrás dos seus sonhos e, quando menos espera, os seus sonhos correrão atrás de você’. No meu caso, aos 62 anos o meu maior sonho correu atrás de mim. E foi desta forma que cheguei até aqui. Como pianista, sinto que essa missão foi cumprida.

Sua habilidade com o piano é um dom e, desde criança, ela foi sendo aperfeiçoada por você com muita determinação. Como resultado, você foi reconhecido com premiações e deixou um verdadeiro legado para a música. Conseguiria descrever como foi deixar esse papel?
Eu penso que para tudo há uma razão, também acredito na doutrina espírita e passei por todas as adversidades da vida aceitando tudo o que me acontecia, buscando sempre uma interpretação racional. Eu tinha a digitação mais rápida do mundo no piano e com os desafios impostos pela vida, fui buscando e encontrando novos caminhos que me trariam emoção e contentamento ao coração, sempre com uma visão muito mais ampliada. Sobre o legado, ainda estou no caminho.

Qual é a sua visão de vida nesta fase da velhice, após a conquista da maturidade e mais experiências?
Eu acredito que a velhice possibilita um maior tempo de reflexão ao indivíduo, talvez por ficar mais tempo sozinho. No entanto, não chamo isso de solidão, mas sim de uma verdadeira reflexão, talvez pela redução de muitos eventos sociais, o que não conseguimos vivenciar enquanto mais jovens. Vejo esse tempo de reflexão como uma excelente oportunidade para realizar um planejamento de vida e ter novas ações. E a idade favorece o alcance deste planejamento, embora muitas pessoas pensem o contrário. No meu caso, quando planejo sinto que aumento a atividade cerebral, ajudo minha memória, minha criatividade e consigo trazer inovações para a minha vida. Aliás, eu considero mais fácil inovar na velhice do que na juventude. Na velhice acabamos por conquistar uma certa liberdade que a juventude, ainda tão amarrada a uma rotina social extensa e fechada, muitas vezes não consegue proporcionar.

Falando em planejamento, poderia contar mais sobre quais são estes planos? Eles estão relacionados apenas ao seu cotidiano ou a vida de forma geral?
Meu planejamento atinge diversos aspectos. Por exemplo, no dia 24 de março o Senado completou 200 anos de criação, marco após a outorga por Dom Pedro I da primeira Constituição do Brasil. Para comemoração deste bicentenário, realizei todo o planejamento para apresentação da orquestra composta apenas com jovens. Durante a apresentação, o nível alcançado por eles foi verdadeiramente de uma orquestra estrangeira. Atuo também no Projeto Orquestrando São Paulo, que tem 700 orquestras parceiras. Desenvolvo um trabalho com cada maestro local, incentivando-o e orientando-o. Assim, cada vez mais, acredito que vou melhorando a minha atividade cerebral, da manhã até a noite.

Em muitas ocasiões, a fase da velhice ainda é atrelada ao adoecimento ou a algum tipo de perda. Embora a ciência nos mostre que doenças poderão surgir em qualquer idade e que perdas fazem parte da vida, ainda há um grande desconhecimento sobre o assunto. Sua própria história é entrelaçada por grandes desafios e até perdas, não é mesmo? O que fica de aprendizado?
Ao longo da minha vida passei por 29 cirurgias, desde a reconstrução do quadril até a situação em que passei dois meses em coma. O meu pai teve câncer quando tinha 39 anos e os médicos lhe deram poucos meses de vida. Naquele momento ele respondeu: “Vocês não me conhecem!”. E realmente não o conheciam, ele veio a falecer somente aos 102 anos, em um acidente de carro. Minha mãe também morreu após os 90. Considero a vida, com todos seus acontecimentos, desafios e reviravoltas, como o próprio aprendizado.

Você assumiu um novo papel, aos 63 anos, ao buscar a formação em regência sinfônica. Poderia nos contar um pouco sobre este processo? Foi algo desafiador?
Minha relação com a música é de longa data e como eu já estava na área há muitos anos, a transformação para regente não foi algo distante. Aprendi a expressar os sentimentos pelo corpo, mente e pelas mãos. Vejo cada músico como uma peça de piano. A cada concerto, tenho como meta fazer com que o público saia, ao mesmo tempo, com uma lágrima nos olhos e um sorriso.

Durante sua carreira, você teve que aprender a tocar com as duas mãos, depois reaprender com a mão esquerda e depois a atuar na regência sinfônica. Considera este ciclo de aprender e reaprender como parte da vida?
Sem dúvida alguma que sim! A vida é um constante aprendizado. Agora mesmo, pouco antes da entrevista, estava com febre e aproveitei o tempo para decifrar uma partitura de um concerto. Além disso, a profissão de músico demanda uma certa renúncia e essa renúncia está ligada ao lazer, pois é necessária uma constante dedicação. Conheci um músico que falava: “Se você deixa de estudar por um dia, se sentirá prejudicado. Se deixar dois dias, quem o dirá será o crítico e, se ficar três dias, quem dirá será o público.”

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Por meio do projeto da Fundação Bachiana Filarmônica, você apoiou milhares de crianças com a inclusão à música. Como classifica essa relação intergeracional?
Nossa, é maravilhosa! Uma relação de troca, de aprendizado mútuo. Digo, ensinar e aprender ao mesmo tempo. A cada aula vejo nesses jovens a força da música. É algo que me traz uma profunda alegria e contentamento.

Com toda a sua dedicação aos papéis de pianista e maestro, você considera que algum papel ficou sem desenvolvimento ou fragilizado em sua vida?
Realmente, em muitos momentos a vida profissional impede que você realize todos os seus sonhos familiares, pois uma carreira de artista requer muita dedicação. No entanto, aos poucos, todos foram entendendo que existe uma missão maior. E, no apagar das luzes, todos foram tendo orgulho da minha resiliência, da atitude de deixar um legado para além do nosso próprio círculo. Como disse, ainda não consegui, mas acho que estou no caminho.

E poderia nos dizer qual é o seu legado para o mundo e para as futuras gerações?
Creio que o meu legado é mostrar que a música venceu. Mas, ainda tenho muitos planos para deixar esse legado, há muito por vir.

Para encerrarmos, qual mensagem deixaria sobre o envelhecer?
A vida é plena e deve ser bem vivida em todas as suas fases: ‘Que bom ser jovem, que bom ser adulto e que bom ser velho’. É isso.

Nota
No Psicodrama, solilóquio é uma técnica em que se solicita ao protagonista que expresse em voz alta seus pensamentos, falando consigo mesmo em cena.

Fotos: arquivo pessoal


Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: ssimmel@gmail.com

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