As condições climáticas extremas amplificam os desafios enfrentados pelas mulheres idosas.
Por Anna Fonseca (*)
No fatídico mês de setembro de 2023, a cidade de Muçum, situada no sul do Brasil, foi palco de uma série de desastres ambientais desencadeados por chuvas intensas, deixando um rastro de devastação e tragédia em sua esteira. Os dados pluviométricos registraram volumes exorbitantes de precipitação, superando em muito a média histórica para o período. Essas chuvas torrenciais resultaram em inundações generalizadas em cerca de 80% da cidade, impactando mais de 600 famílias e deixando comunidades inteiras em estado de desamparo.
As consequências foram severas: casas e comércios foram submersos, estradas bloqueadas e infraestruturas danificadas, incluindo a Ponte Brochado da Rocha, um dos principais acessos à cidade. O saldo trágico desses eventos climáticos extremos foi a perda de 16 vidas por afogamento, duas delas ainda desaparecidas, deixando um lamento profundo na comunidade de quase 5 mil habitantes.
Este desastre serve como um alerta sombrio para os riscos crescentes que enfrentamos em um mundo onde eventos climáticos extremos se tornam cada vez mais frequentes e intensos. De acordo com Simon Stiell, secretário-executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, governos e líderes empresariais têm apenas dois anos para tomar medidas decisivas para evitar uma catástrofe climática ainda maior no planeta.
Este alerta, emitido por Stiell no início de abril, já vem sendo repetido há alguns anos por autoridades em todo o planeta, em diferentes catástrofes climáticas, como quando a Alemanha, Bélgica e Holanda ficaram debaixo d’água por Inundações catastróficas na Europa Ocidental, matando mais de 120 pessoas e deixando centenas de desaparecidos, ou no início de julho de 2021, quando chuvas torrenciais provocaram um poderoso deslizamento de terra em Atami, província de Shizuoka, cerca de 90 quilômetros a sudoeste de Tóquio, Japão. O deslizamento de terra destruiu cerca de 130 edifícios, num país já ‘ambientado’ a enfrentar avalanches, com média de 1.500 por ano na última década, um aumento de quase 50% em comparação com os 10 anos anteriores, de acordo com relatório do governo japonês de 2020. Nesta última década, temperaturas extremas têm atingido países em diferentes localidades, como os EUA, Canadá, Iraque e Índia.
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E à medida que essas mudanças se intensificam, a resiliência das mulheres idosas se torna ainda mais evidente, especialmente em contextos como a tragédia ambiental que assolou a cidade de Muçum, atingida por três vezes no mesmo ano e num curto espaço de tempo. Em agosto último, uma chuva de granizo destruiu mais da metade dos telhados da cidade, em setembro as águas do Rio Taquari, sobrecarregadas pelos seus afluentes, devastou a cidade que, em novembro do mesmo ano, foi novamente atingida pela chuva, mas em menores proporções.
Precisamos parar de culpar a natureza pelas tragédias climáticas
Os dados sobre as chuvas na Região Sul do Brasil nos últimos cinco anos revelam uma tendência preocupante de aumento nos índices pluviométricos, exacerbando o risco de desastres naturais. Essas condições climáticas extremas amplificam os desafios enfrentados pelas mulheres idosas, que muitas vezes têm dificuldades adicionais de mobilidade e acesso a recursos.
A tragédia em Muçum destacou a necessidade urgente de políticas públicas eficazes de prevenção e de acolhimento para proteger os idosos em situações de desastres. Ações públicas robustas que levem em conta as necessidades específicas das mulheres idosas. Isso inclui o acesso destas às tecnologias de prevenção, a abrigos seguros, serviços de saúde adequados e apoio psicossocial, subsídios financeiros específicos e prioritários, entre outros recursos essenciais.
Neste sentido, é inspirador observar o primeiro processo judicial bem-sucedido que um grupo de mulheres idosas moveu e venceu, contra o governo da Suíça, por falhar em protegê-las adequadamente durante as emergências climáticas que assolam o planeta.
No último dia 09 de abril, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) emitiu uma decisão favorável à ação movida por um grupo de mulheres idosas contra o governo suíço, alegando que os impactos das mudanças climáticas as prejudicaram diretamente e que os esforços do país para reduzir as emissões são inadequados. Na decisão do caso KlimaSeniorinnen Schweiz e Outros v. Suíça, o tribunal reconheceu a violação de dois artigos da Convenção Europeia de Direitos Humanos: o direito à privacidade e vida familiar, e o direito a um julgamento justo.
Esse caso emblemático demonstra não apenas a resiliência das idosas, mas também a importância de responsabilizar os governos por suas ações, ou falta delas, na proteção dos cidadãos mais vulneráveis. Ao garantir que os direitos das mulheres idosas sejam respeitados e protegidos, estamos fortalecendo não apenas indivíduos, mas toda a sociedade.
Além disso, é crucial reconhecer e incentivar o papel vital das redes de apoio e solidariedade no fortalecimento da resiliência desta parte da população. Em Muçum, comunidades inteiras vizinhas à cidade se uniram para ajudar os mais afetados, demonstrando a importância da coesão social em tempos de crise.
Nesse contexto, as mulheres idosas emergem como exemplos notáveis de adaptação e resiliência, enfrentando adversidades climáticas com determinação e sabedoria. Através da análise dos estudos de Bodstein, Lima e Barros (2014) e Miranda, Mendes e Silva (2016), podemos compreender melhor como essas mulheres enfrentam e superam as consequências das emergências climáticas.
Em sua obra, Bodstein, Lima e Barros (2014) destacam a importância de políticas de resiliência eficazes para proteger os idosos em situações de desastres. No entanto, é fundamental reconhecer que as mulheres idosas muitas vezes enfrentam desafios únicos que exigem abordagens diferenciadas. Como ressalta Miranda, Mendes e Silva (2016), o envelhecimento populacional no Brasil traz consigo desafios sociais significativos, especialmente para as mulheres, que muitas vezes enfrentam dupla ou tripla jornada, além de lidar com estereótipos de gênero arraigados.
E esta força não se resume apenas à capacidade de superar desafios imediatos. Ela também envolve a reconstrução de uma nova autonomia e da dignidade. Um exemplo disso são os diversos grupos existentes em Muçum, onde a Prefeitura busca, transporta e reúne semanal ou quinzenalmente, grupos de mulheres idosas e não, para encontros de produção de artesanato, lanches comunitários, bailes e por outros motivos sociais ou de empreendedorismo.
Fotos: Anna Fonseca
Essas mulheres inspiram não apenas pela sua capacidade de enfrentar as dificuldades, mas também pela sua esperança e a solidariedade em meio à adversidade, como conta Helena Mirandole, 75 anos, que mesmo idosa, salvou sua vizinha “naquela noite, nós vimos a mulher sozinha e desesperada, a água levando tudo que ela tinha no paiol. O que deu para tirar a gente levou embora. Como nós tínhamos trator, colocamos o que havia em cima e levamos embora, mas a água subiu e o trator não andava mais. Largamos tudo e ficamos junto com ela, porque ela estava desesperada”, conta.
Um outro exemplo de força é o relatado pela moradora Janete Zílio, que mesmo ainda não sendo considerada idosa por ter 58 anos, foi levada naquela noite pela correnteza por mais de 15km sobrevivendo agarrada numa telha de zinco da sua casa, desmoronada pelo Rio Taquari. Janete perdeu dois cunhados e seu sogro nesta tragédia.
No entanto, é crucial reconhecer que a resiliência das mulheres idosas não pode ser vista como algo dado, mas sim como uma força a ser nutrida e apoiada por políticas públicas e ações comunitárias.
Em última análise, esta dignidade feminina é mais um claro testemunho da força e da capacidade de se adaptarem e prosperarem mesmo em face de desafios aparentemente insuperáveis. Ao reconhecer e valorizar essa resiliência, podemos aprender lições valiosas sobre a importância da solidariedade, da empatia e da determinação na construção de comunidades mais fortes e saudáveis, para todos.
Referências
BECK, U.B. Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade (Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere Moderne). Alemanha, 1986. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5299999/mod_resource/content/1/Ulrich%20Beck%20-%20Sociedade%20de%20risco_%20Rumo%20a%20uma%20Outra%20Modernidade.pdf Acesso em 12 fevereiro 2023.
BODSTEIN, A.; LIMA V. V. A.; BARROS A.M.A. A vulnerabilidade do Idoso em Situações de Desastres: Necessidade de uma Política de Resiliência Eficaz, 2014. Disponível em https://www.scielo.br/j/asoc/a/mVBdgwpNz5YymN4tTQZHGXR/ Acesso em 12 fevereiro 2023.
DELTON, W.C. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica, 2ª Edição, 2020. Editora Revista dos Tribunais.
MIRANDA, G. M. D.; MENDES, A. C. G.; SILVA, A. L. A. O envelhecimento populacional brasileiro: desafios e consequências sociais atuais e futuras. Rev. Bras. Geriatr. Gerontol., Rio de Janeiro, v. 3, n. 19, p. 507-519, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbgg/a/MT7nmJPPRt9W8vndq8dpzDP/?lang=pt. Acesso em 12 dezembro 2023.
OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Resumo do Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde. OMS: Genebra, 2015. Disponível em: http://sbgg.org.br/wp-content/uploads/2015/10/OMS-ENVELHECIMENTO-2015-port.pdf. Acesso em 03 dezembro 2023.
ROSO, A.; ROMANINI, M. Empoderamento individual, empoderamento comunitário e conscientização: um ensaio teórico. Psicologia e Saber Social, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 83-95, 2014. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/12203. Acesso em 02 dezembro 2023.
Nota
O presente trabalho faz parte do resultado parcial de pesquisa selecionada na 3ª edição do “Edital Acadêmico de Pesquisa 2023: envelhecer com futuro”, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento.
(*) Anna Fonseca – Jornalista e Técnica Ambiental.
Foto destaque de Thgusstavo Santana/pexels.
Atualizado dia 18/04 às 9h12