Falar de livros é sempre um imenso prazer, principalmente quando a tarefa é comentar o recém lançado “Podemos Dizer Adeus Mais uma Vez” do psiquiatra francês David Servan-Schreiber sobre seus últimos meses de vida. Neste tocante relato, o médico se despede dos familiares, amigos e leitores e tenta abordar as questões da vida que todos têm de enfrentar.
Luciana H.Mussi *
Após descobrir um tumor maligno no cérebro em 1992 e receber um prognóstico de que dificilmente sobreviveria mais do que seis meses, Servan-Schreiber fez sua escolha pela vida. Sobreviveu quase 20 anos, tendo seu último suspiro em 24 de julho de 2011, aos 50 anos, ao som do segundo movimento do Concerto para Piano Nº 23 de Mozart.
O psiquiatra estudou para descobrir como poderia contribuir para a própria cura e criou um programa anticâncer, baseado em evidências científicas, que o ajudou a fortalecer seu organismo e a superar uma recaída anos mais tarde. Seu livro “Anticâncer”, trabalha numa postura proativa do paciente, ao mesmo tempo em que defende o uso de terapias alternativas aliadas à medicina tradicional.
Sobre o livro, escreveu a revista francesa Paris Match, “um manual de vida estarrecedor”. “Ter a possibilidade de preparar a partida é, na verdade, um grande privilégio”, escreveu ele.
Lembrando um dos Sermões do poeta inglês John Donne (1572-1631): “A humanidade, como um todo, forma um grande livro. Quando um homem morre, um capítulo não é arrancado (…) e sim traduzido para um idioma melhor. E cada capítulo deve assim ser traduzido. Deus emprega vários tradutores. Alguns trechos são traduzidos pela idade (…) outros, por doenças; alguns pela guerra. Mas a mão de Deus reúne todas as folhas soltas (…) e as coloca naquela biblioteca (…) em que os livros se abrem uns para os outros.”
Assim como a literatura, os filmes de curta metragem também trabalham as questões desta delicada e controversa “preparação para a morte”. Um belíssimo e comovente exemplo, que beira, em alguns momentos, a comédia, é o curta de 2002 “Morte.” do cineasta brasileiro José Roberto Torero. Entre túmulos, cânticos religiosos, flores e a bagagem acumulada pela vida, um casal, interpretado pelos atores Paulo José e Laura Cardoso, se prepara para a “grande viagem”, numa história contada em diálogos tocantes:
Ela: – Será que vai demorar muito?
Ele: – Não sei.
Ela: – Você está com medo?
Ele: – Um pouco.
Ela: – Essa espera é que dá agonia.
Ele: – Tem que ter paciência, um dia ela chega.
Ela: – O que a gente faz enquanto isso?
Ele: – Esse é o problema.
É preciso ter coragem e acima de tudo honestidade para descrever o próprio fim, dia após dia, sem se entregar a lamentos desesperados ou brigas íntimas com um Deus silencioso que nega a sua presença. Servan-Schreiber optou pelo caminho do conhecimento e tudo aquilo que a lucidez das palavras e das emoções poderiam proporcionar a ele e a seus leitores. Mas nem pensem que Servan-Schreiber não tinha medo da morte, como não ter?
Tendo na sua formação as lições de coragem dadas pelo pai na infância, como “aguentar firme mesmo tremendo como vara verde”, o psiquiatra procurou seguir a risca as palavras do pai num relato, muitas vezes tão real e cáustico que chega a incomodar. É interessante porque numa leitura como esta procuramos sempre uma dose de sentimentalismo ou até de pieguice, mas neste caso, encontramos a realidade de uma doença cruel, devastadora, que no início descansa calmamente em nosso corpos, quase despercebida e momentos ou messe, anos depois se manifesta como um monstro devastador denunciando a nossa própria consciência de uma inexorável finitude.
Num trecho de seu livro, Servan-Schreiber conta sobre o dia em que chamou a mulher, Gwenaëlle, para planejar o futuro dos filhos depois de sua morte — Charlie, então com 2 anos, e Anna, com apenas 6 meses. De seu primeiro casamento, ele teve Sacha, na ocasião com 16 anos. “Fiquei muito surpreso ao descobrir até que ponto a redação de um testamento pode ser gratificante. Ela cria um sentimento de domínio total e, ao mesmo tempo, de generosidade, doação, transmissão”, descreveu.
Pensar que esta derradeira conversa com a esposa e filhos foi um momento natural, aceito por um paciente terminal que lida com sua morte bravamente, é não compreender a essência de um último relato, o próprio epitáfio escrito e sentido em cada palavra por seu autor.
“Podemos Dizer Adeus é também uma resposta aos leitores que talvez venham a se perguntar como o autor do livro “Anticâncer” morreu de câncer”, disse a Revista Veja o engenheiro Franklin Servan-Schreiber, um dos irmãos do psiquiatra. E ela está na página 53: “Podemos pôr todos os nossos trunfos no jogo. Mas o jogo nunca está ganho”. Este é um dos maiores enigmas da existência: não há perdas ou ganhos neste jogo, apenas conhecimento, aprendizado.
Segundo a reportagem, “terminado o livro, o médico recolheu-se na antiga casa da família na região francesa da Normandia. Ali, nas últimas semanas, recebeu a visita de parentes e amigos. A mulher e os filhos pequenos o visitavam com frequência. Servan-Schreiber morreu à noite, por volta das 9 horas, na companhia da mãe e dos três irmãos.
Sobre o medo da morte, o diretor americano Woody Allen não perde piada: “Não que eu esteja com medo de morrer. Apenas não queria estar lá quando isso acontecesse”. Servan-Schreiber (como todos nós), viveu para a vida e seguiu numa viagem, em princípio, sem passagem de volta. Permanecem as palavras expressas pela alma do autor em “Podemos Dizer Adeus Mais Uma Vez”. Assim é viver!
Referências
BERGAMO, G. (2011). Receita para a boa morte. Disponível Aqui. Acesso em 05/10/2011.
DONNE, J. Fragmento de Meditações XVII. Disponível Aqui. Acesso em 23/07/2010.
IMAGEM: DAVID SERVAN-SCHREIBER. Disponível Aqui. Acesso em 05/10/2011.
SERVAN-SCHREIBER, D. (2011). Podemos Dizer Adeus Mais uma Vez. Disponível Aqui. Acesso em 08/10/2011.
TORERO, J.R. (2002). Morte. Disponível Aqui. Acesso em 08/10/2011.