Espantada, recebeu como resposta uma ‘pérola’: “E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de ‘velhas’: só aceitavam ser ‘idosas’. Pensei: ‘roubaram a velhice’”.
Que velhice é essa que está no imaginário das pessoas que a torna tão terrível e miserável a ponto de criarmos termos específicos para tal categoria (terceira idade, melhor idade, idade do lazer…)? O envelhecimento transformou-se em problema social e assim novas definições de velhice e do envelhecimento ganharam tamanho e notoriedade.
Brum têm razão quando diz que as palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito. Elas falam, gritam pela composição de suas letras e escondem emoções guardadas e nem mesmo reconhecidas pelo seu dono. Junto ao dito ‘velho’, quase oculto e tão simples como é e deve ser, aguarda a palavra fim de alfabeto, fim de percurso, ‘a morte’.
E diante do inexorável, fugimos das palavras definitivas, da realidade da finitude de todos nós. Como afirma a jornalista “testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte) (…). ‘Idoso’ – talvez um lifting completo na palavra ‘velho’.
Brum segue sua reflexão revoltosa em defesa do ‘velho’ – uma palavra com identidade de um ser/estar no tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos. O filósofo Cícero acrescenta: “é irônico porque ?todos os homens desejam alcançar a velhice, mas ao ficarem velhos, se lamentam. Queixam-se de que ela chega mais furtivamente do que a esperavam. Por diabos, a velhice seria menos penosa para quem vive oitocentos anos do que para quem se contenta com oitenta anos?”. E ele finaliza: “simplesmente, é preciso que haja um fim”.
Sim, não se vive para sempre. O processo existencial segue como um fato natural, universal e necessário à alma cumprindo um ciclo biológico e espiritual do ser humano que envolve o nascimento, o crescimento e a morte.
Trata-se de uma infeliz realidade, mas a juventude, nos nossos dias, não é mais uma fase da vida, mas uma vida inteira. Quer saber o pior? Somos obrigados a conviver com essas múltiplas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Brum esbraveja com razão: vive-se um vale tudo de termos e definições.
Ela dá exemplos: “Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade” (…). E o uso do diminutivo, então! “(…) como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável”.
A questão é que a velhice e seus incontáveis termos “apaziguadores” guardam armadilhas, até para nós que escrevemos sobre eles. Um exemplo disso é julgar o “estar em um asilo” como “estar apartado do mundo”. Isto não reflete uma verdade para todos os casos e locais (asilos, casas de repouso, instituições…). Um tema profundo, complexo, de incontáveis reflexões.
Brum ainda afirma: “A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital”.
Na realidade Brum toca em um tema – a morte – que até o momento a humanidade não conseguiu explicar nem resolver, pelo contrário, tenta negá-la a todo o custo. Mas o paradoxo disso é que os anos a mais de vida conquistados só ampliam a angústia dessa proximidade, pois esse alargamento da vida que se ganhou é justamente aquele que está mais próximo da morte. Por isso penso que a morte deve ser entendida como parte integrante da vida, como um processo que se inicia no nascimento. Sendo parte integrante da natureza, é uma das múltiplas formas de sobrevivência: vivemos para a morte, seguimos em direção a ela. Onde começa uma e onde termina a outra, nunca saberemos. Este é, apenas, um dos enigmas existenciais que nos banhamos e nos questionamos diariamente.
A jornalista desabafa sobre está, a inelutável de todas as batalhas travadas ao longo da vida, a morte: “A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim.
A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa”.
O que caracteriza os indivíduos na última fase da vida? Talvez viver o máximo possível, terminar a vida de forma digna e sem sofrimento, encontrar ajuda e proteção para a progressiva diminuição de capacidades, continuar participando ativamente dos assuntos e decisões que envolvem o “estar vivendo”, prolongar ao máximo conquistas e prerrogativas sociais como a propriedade, a autoridade e o respeito. Entretanto o envelhecimento apresenta uma ampla variação nas formas pelas quais é vivido, simbolizado e interpretado em cada indivíduo e sua cultura.
Brum ainda traz uma bela expressão, cujo autor não foi localizado: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”.
Ela continua: “A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem”.
Aceitar a velhice em nossa sociedade é algo bem difícil. O uso de eufemismos e a tentativa de negá-la por aqueles que por ela passam também é muito evidente. Isso acontece porque vivemos numa sociedade que supervaloriza a juventude em detrimento dos demais tempos da vida. Nela, ao mesmo tempo em que se buscam diversas maneiras para prolongar o tempo de vida das pessoas, luta-se contra a velhice.
A velhice também é vista como um problema, pois a sociedade não está preparada para receber esse contingente populacional que possui demandas sociais próprias.
Assim pensamos: que identidade será esta do velho? Será a identidade do assim chamado: “Olha… é o velho”. Que velho é esse sem nome?
A jornalista reforça: “Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua. O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma”.
Usando e abusando de palavras fortes e denunciadoras, Brum afirma: “chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem: Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito.
Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos”.
Mas o interessante deste paralelo da velhice com os “reconhecidamente notáveis” é que, para as pessoas, de uma forma geral, a velhice é muito bem aceita quando vista deste ângulo. É comum ouvirmos: “Nossa, olha como ele ou ela estão bem! Nem se vê que estão velhos!” Daí pergunto: Por que, não é para ver? Pode ofender nossa visão sensível? É, vivemos uma velhice que machuca, com um velho na carne e na palavra domesticados todo tempo.
“Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, ‘nasce-se adolescente e morre-se adolescente’, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar.
Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver. Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição”, afirma Brum.
Refletindo sobre sua própria velhice, Brum ainda diz que já começa a ouvir bobagens do tipo “ser velho de espírito jovem”. Novamente uma velhice amenizada, suavizada por seu oposto positivo.
“Envelhecer não é fácil (…) Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas “cracas” grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem.
Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje”, explode a jornalista.
Bem, não sei dizer se o acúmulo de anos nos dá, na mesma proporção, “um saber mais”. Também não sei se lidamos melhor com os tombos, as perdas ou eventuais frustrações e decepções. Acho que não, continuamos a ser quem sempre fomos sofrendo e sentindo da mesma maneira e com igual intensidade.
Também devo confessar que me entristece a constatação que os meus queridos e queridas estão envelhecendo: sei que com isso a proximidade da morte passa a ser inevitável. E quanto as “cracas” grudadas na alma, acho que só com muitas vidas vividas, elas, talvez, sejam superadas ou entendidas. Fraquezas confessadas, sim, é permitido.
Brum finaliza: “Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto”.
O que dizer mais? Talvez: Quando chegar a minha hora, por favor, não importa como me chamem, mas me cedam passagem que preciso seguir, buscando uma razão para as coisas, digo, todas as coisas dessa breve, não tão breve ou brevíssima existência.
E termino aqui reproduzindo um dos 35 comentários postados, o da Marise:
A Eliane neste post veio corroborar o que sempre digo: velhice é uma fase da vida. Eu também detesto a tal de “melhor idade”. Sempre digo que se alguém disser isso para mim eu mato.rsrsrs A Eliane recém está entrando nos 50. Eu já estou nos 76. Portanto sou velha mesmo. E feliz porque ainda estou aqui. Podendo, com muita alegria participar deste blog, do Portal que amo. Podendo brigar quando acho que preciso.
Amando ainda meu companheiro de 56 anos. Amando meus velhos e novos amigos que fiz aqui na Net.
Depois de criar os filhos poder ver o neto casando, a neta se formando e ainda ter um netinho de 9 anos para curtir e muito. ESte netinho eu sempre digo é a alegria da minha velhice.
Meninos e meninas é bom ser velho. Basta a gente assumir a velhice com todas as suas limitações(e não são poucas).
Dá até para dançar um tango ou um bolero de vez em quando kakakaka
E concordo com a Eliane: eu também quero viver a morte.
Referências
BRUM, E. (2012). .Me chamem de velha, por Eliane Brum. Disponível Aqui. Acesso em 23/02/2012.
CÍCERO, M. T. (2010). Saber envelhecer e a amizade (Neves, P., Trad.). Porto Alegre: L&M.
IMAGEM (2002). Disponível Aqui. Acesso em 23/02/2012.