Velhice e felicidade, uma amizade possível? (parte 4)* - Portal do Envelhecimento e Longeviver
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Velhice e felicidade, uma amizade possível? (parte 4)*

Enfim, uma velhice feliz é uma velhice que não espera. Velhice e felicidade, uma amizade possível? Talvez necessária…


Aqui estamos, finalmente, na última parte de nossa série de textos sobre a possibilidade do exercício de uma velhice feliz. Eu discutia, na parte anterior, sobre o tema da felicidade na obra do filósofo André Comte-Sponville. Continuemos, pois!

Qual o motivo de viver?, pergunta-nos Comte-Sponville (2001). Algo a mais nos mobiliza. Para o autor, a religião ou o medo da morte podem ser um fator importante, mas não bastam. A felicidade, já vimos, parece sempre nos escapar. Então, o que será que de real e positivo nos impele a seguir vivendo, inclusive por vezes alegremente? Ora, o prazer. O prazer está aí, concretamente; apreciamos exatamente a sua presença. Não se trata do alívio do sofrimento ou de uma carência. Mas de uma presença mesma: da comida boa, da bebida agradável, da companhia aprazível, da música interessante, da bela paisagem… Podemos pensar tudo isso sem apelarmos à ideia de carência, ainda que continuemos desejando; só que agora, no caso, um desejo positivo. [1] Esse desejo positivo seria como uma potência de gozar que, para o autor, se manifesta de diversos modos: a alegria, que seria a potência do riso; o bom gosto, que seria a potência de amar o belo ou o bom; a libido, que seria a potência de fazer sexo; entre outros. O desejo não é mais carência, mas potência de gozo, o prazer em ato. Desta feita, é do prazer que devemos partir, do prazer do corpo e do espírito, que se entrelaçam, já que são manifestações de um mesmo ser. É do prazer que temos uma experiência positiva: “a felicidade não seria nada sem o prazer, enquanto o prazer, sem a felicidade, ainda é alguma coisa” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 428). Por outro lado, a felicidade permanece o objetivo, pois quem se contentaria com o prazer como projeto de vida?, indaga Comte-Sponville: o prazer seria o bem primeiro, a felicidade o bem soberano.

Avançando, para o nosso autor, a felicidade supõe uma conversão do desejo, que chamamos justamente de sabedoria. A chave da felicidade, se assim podemos dizer, reside na sabedoria de não mais desejarmos o que nos falta (afinal, o tédio está logo ali…)ou o que somos (afinal, o que somos realmente?), “mas o que vivemos, conhecemos ou fazemos”, a felicidade é “um grande sim ao mundo e à vida”. Um sim que não é propriamente um estado ou uma disposição da existência, mas um ato: “Ser feliz não é nem ter nem ser: é fazer” (p. 431). É um ato que vale por si: agir pelo prazer da ação, não pelo resultado em si; viver, não pela felicidade, mas por viver: o que é a própria felicidade.

Com isso, Comte-Sponville pretende superar a “armadilha da esperança”. Além da diversão, o autor sugere que normalmente nos valemos de “estratégias esperançosas” para esquecermos ou tentarmos superar nossa condição de frustração ou tédio. Uma delas é o que o autor denomina de “fuga para a frente”, ou seja, de esperanças em esperanças vamos alimentando a ilusão de que a sorte nos alcançará, exatamente como um jogador persistente de loteria que se consola com a possibilidade do ganho na semana seguinte. A outra estratégia é a religiosa. Já não se trata de uma fuga para a frente, mas um salto propriamente: uma esperança absoluta. Claro que esta é uma estratégia legítima, porém, aí já não seria sabedoria, mas fé. E esta não é a estratégia defendida por Comte-Sponville.

Para o autor, se muito esperarmos, na verdade, perderemos a vida: “a felicidade começa quando não a esperamos mais”, daí dizer que precisamos da felicidade desesperadamente. Não para agora, imediatamente, como numa alucinada ansiedade. Não! A felicidade desesperadamente é uma felicidade em ato, como disse, porque “é próprio de toda ação – e de todo prazer ativo – consumar um desejo que, no presente, não carece de nada” (p. 432). Caminhar sem esperar os próximos passos, ter prazer em caminhar, desejando este passo mesmo. Ler sem esperar que o livro acabe, ter prazer em ler, desejar exatamente esta página. Comer um prato sem esperar o seu fim, simplesmente comer, desejar esta garfada…

Comte-Sponville (2015) define a esperança a partir de três características. A primeira delas, a mais comum, é o desejo que se refere a algo que não temos ou a algo que não é, ou seja, uma esperança mais relacionada ao futuro, pois espero que eu venha a ter ou que algo venha a ser. Trata-se, assim, de entender a esperança como um desejo sem gozo. No que tange à segunda característica, posso ter notícias de um amigo que não estava bem, e ao lhe enviar uma mensagem lhe digo: “espero que esteja melhor”, isto é, uma esperança relacionada ao presente. Porém, pode ser que eu receba hoje a notícia que esse mesmo amigo passou por uma cirurgia ontem, de sorte que eu decido lhe enviar a seguinte mensagem: “espero que a cirurgia tenha sido um sucesso”, quer dizer, uma esperança relacionada ao passado. Em ambos os casos, o que há de semelhante é a minha ignorância sobre a real situação de meu amigo. Trata-se, assim, de entender a esperança como um desejo sem conhecimento. Agora, suponhamos que esse meu amigo esteja bem e tenha me convidado para um evento, por exemplo, o seu aniversário, daqui a um mês, que também será uma grande festa em comemoração à sua recuperação. Respondi-lhe que iria com prazer. A poucos dias da festa, ele me liga para confirmar a minha presença e dessa vez lhe respondo “Espero ir”. Ora, certamente meu amigo poderia se encafifar. Como assim espera ir? Com efeito, ele teria razão, já que a minha resposta, considerando a minha situação, deveria ser “Estarei lá!” No caso, eu desejava ir. Um desejo relacionado ao futuro. Contudo, não estamos diante de uma esperança, como na primeira característica, isto é, de um desejo a que falta o seu objeto. Na verdade, no caso do convite do meu amigo, estar presente na sua festa depende de mim, por isso não faz sentido eu lhe falar “Espero ir”. Desta feita, não é o caso de uma esperança, mas de uma vontade. Como afirma Comte-Sponville (2015): “Ninguém espera aquilo de que se sabe capaz” (p. 56); ou seja, “a esperança é um desejo cuja satisfação não depende de nós” (p. 57, grifo no original). Eis, portanto, sua terceira característica. Trata-se, assim, de entender a esperança como um desejo sem poder.

Por tudo isso, Comte-Sponville vê a esperança como uma impotência da alma ou uma fraqueza. Então, quando estamos no âmbito da esperança, estamos de alguma maneira distantes do prazer, do conhecimento e da ação. Ora, assim sendo, não é o caso de esperar, mas de agir: “É por isso que podemos ser felizes, é por isso que às vezes o somos: porque fazemos o que desejamos, porque desejamos o que fazemos!” (p. 48-9). A propósito, é interessante salientar que um sentimento “amigo” da esperança é o medo; não são sentimentos contrários, na verdade caminham juntos, faces da mesma moeda: a esperança de ir bem na prova é a outra face do medo de ser reprovado; a esperança de continuar bem de saúde é a contraparte do medo de ficar doente.

O contrário da esperança não é o medo, mas o gozo, o saber e o poder. É a própria felicidade, que, para Comte-Sponville, só existe no presente. Até mesmo porque só temos o presente à disposição. Na primeira parte do texto, vimos com Beauvoir que, situados no presente, temos em vista o futuro por meio de projetos que transcendem o nosso passado. Comte-Sponville sugere que aquilo que esperamos é o futuro, e o que vivemos é o presente, até porque só o presente existe. E não há contradição entre as perspectivas de Beauvoir e Comte-Sponville. Elas, na verdade, se complementam. É óbvio que Comte-Sponville aceita a ideia de futuro, bem como a de projeto. [2] Aliás, com Beauvoir conversamos sobre a necessidade de se produzir um senso de futuro para velhas e velhos, já que sem um senso de futuro, isto é, de projeto, restaria apenas a inércia no presente (uma perpétua imobilidade) ou a nostalgia (uma vida de lembranças). O que é a inércia senão a esperança de um futuro que nunca virá ou que o tempo passe logo? E o que é a nostalgia senão a esperança que o passado reviva?

Uma vida povoada de fins, como pedia Beauvoir, é uma vida de ação, como nos convida Comte-Sponville, e vice-versa. Imaginamos que uma palavrinha dita pelo autor, recuperada dos estoicos, nos permite fazer uma síntese entre os dois pensadores: vontade. É ela que nos faz agir. Quem espera algo é porque, em última instância, não pode tê-lo. Assim, não se trata de esperar, mas de querer. Porém, não de querer qualquer coisa. Seria ingenuidade ou tolice, e rapidamente cairíamos na infelicidade. Trata-se, antes, de fazer o que se quer, o que se conhece e o que se pode. De que nos adiantaria termos projetos que não dizem respeito à nossa vontade, ou sobre os quais pouco sabemos e não temos condições de realizar? Nessa mesma direção, Beauvoir (2018) comenta que não é raro que o peso do corpo tenha menos importância que a postura mesma em relação ao próprio corpo: “O drama do velho é, muitas vezes, ele não poder mais o que quer” (p. 330). Comte-Sponville nos mostra, como se conversando e concordando com Beauvoir, que a questão é, na verdade, querer o que se pode!

Em que pese a carga semântica negativa que o termo pode trazer, Comte-Sponville gosta da palavra “desespero” porque ela indica certa dificuldade do caminho. Perder a esperança é algo doloroso. Assim, o desespero, nesse caso, aponta para um certo trabalho, um esforço para que tenhamos menos dependência da esperança. Não se trata aqui do desespero do angustiado, do desespero do niilista, mas sim do desespero do sábio, ou seja, “da desilusão, da lucidez, do conhecimento” (2015, p. 69): um alegre desespero, um desespero como força que age com apetite. Quer dizer que esperança nunca mais? Ora, não somos sábios. Sempre haverá esperança, pois sempre haverá, como sugere Comte-Sponville, “desejo e ignorância, desejo e impotência, desejo e falta”. Não se trata, portanto, de abandonar toda esperança, ela virá, somos humanos, somos frágeis. [3] Mas é o caso, por que não, de investirmos na confiança e na coragem, de aprendermos a agir conforme o que queremos, sabemos e podemos.

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Retomando o diálogo com Beauvoir para encerrar, ao menos por enquanto, esta série de textos, cabe destacar que ela tinha profunda discordância com as pessoas idosas que se tornavam indiferentes com o mundo e com as pessoas conforme o lema “logo morrerei, que diferença me faz o que será do mundo?”. Como vimos no primeiro momento da série, Beauvoir acreditava que começamos e continuamos no outro: não nos tornamos humanos sozinhos! Neste sentido,uma atitude que pode contribuir no desenvolvimento de um senso de futuro para as pessoas idosas, mesmo que o tempo de vida lhes seja menor, é precisamente assumir um futuro que não se encerra nelas próprias, mas do qual fazem parte como construtoras no tempo presente, o futuro mesmo da humanidade [4], como é o caso, por exemplo, da questão ecológica e das mudanças climáticas (MACHADO; VELASCO; AMIN, 2006; ONU, 2022): “Quando os acontecimentos que ocorriam no mundo me dilaceravam, era o mundo que eu desejava mudar, e não o lugar que ocupava nele” (BEAUVOIR, 1982, p. 38).

Uma velhice feliz, portanto: uma velhice habitada por fins e projetos, e também pessoas! Uma velhice em que a alegria está por aí (e por aqui), como um sentimento de expansão da potência de existir e de agir percebido como imediatamente possível. Uma velhice em ato: como ação consciente e prazerosa. Enfim, uma velhice feliz é uma velhice que não espera. Velhice e felicidade, uma amizade possível? Talvez necessária…

Reinauguração (Carlos Drummond de Andrade)
Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmistificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade – velho ou moço – pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza, a exata beleza que vem
dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.

Notas
[1] Comte-Sponville (2001, p. 428) sintetiza muito bem esse ponto no trecho a seguir: “A música que me enche de prazer não me faltava antes de soar (nem a fortiori, enquanto a ouço), nem essa paisagem primaveril, nem esse riso que explode, nem mesmo, tantas vezes, o homem ou a mulher que me satisfaz… Portanto, apesar de Platão ou de Schopenhauer, é preciso que o desejo não seja sempre nem somente uma carência. O que, então? Uma potência: potência de gozar e gozo em potencial.”
[2] “Quer isso dizer que devamos renunciar ao futuro? Claro que não! Como poderíamos estar aqui, nós todos, se não tivéssemos previsto estar? Esta conferência está programada há vários meses; está marcada em nossas agendas há várias semanas. Para muitos de nós, foi preciso se organizar de antemão, telefonar a amigos, reservar lugares, arranjar alguém para tomar conta dos filhos… Era um projeto, em outras palavras, um pensamento voluntário orientado para o futuro.” (COMTE-SPONVILLE, 2015, p. 94)
[3] “A felicidade não é um absoluto, é um processo, um movimento, um equilíbrio, só que instável (somos mais ou menos felizes), uma vitória, só que frágil, sempre a ser defendida, sempre a ser continuada ou recomeçada. (…) Não se trata de se impedir de esperar, nem de esperar o desespero. Trata-se, na ordem teórica, de crer um pouco menos e de conhecer um pouco mais; na ordem prática, política ou ética, trata-se de esperar um pouco menos e de agir um pouco mais; enfim, na ordem afetiva ou espiritual, trata-se de esperar um pouco menos e amar um pouco mais. (COMTE-SPONVILLE, 2015, p. 88-9)
[4] “A preocupação, que é a memória do futuro, faz-se lembrar suficientemente a nós. É sua natureza, ou melhor, é a nossa. Quem esqueceria – fora os sábios e os loucos – que tem um futuro? E quem, fora os maus, só se preocuparia com o seu? Os homens são egoístas, com certeza, mas menos absolutamente do que às vezes se imagina: ei-los, mesmo quando não têm filhos, a se preocupar com as gerações  futuras, e é uma bela preocupação.” (COMTE-SPONVILLE, 2009, p. 24)

Referências
BEAUVOIR, Simone de. Balanço final. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
______. velhice. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
COMTE-SPONVILLE, André. Uma educação filosófica e outros artigos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. Pequeno tratado das grandes virtudes. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 
______. A felicidade, desesperadamente. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
MACHADO, Rosângela Fátima de Oliveira; VELASCO, Fermin de la Caridad Garcia; AMIN, Valéria. O encontro da Política Nacional da educação ambiental com a Política Nacional do idoso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 162-169, set/dez. 2006.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. The UN decade of healthy ageing 2021-2030 in a climate-changing world. Disponível em: <https://cdn.who.int/media/docs/default-source/decade-of-healthy-ageing/decade-connection-series-climatechange.pdf sfvrsn=e926d220_4&download=true>. Acesso em 02 de abril de 2023.

* O presente trabalho é resultado parcial de pesquisa que foi selecionada pelo Edital Acadêmico 2022: envelhecer com futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento e Longeviver.

Foto destaque de Black Light Media/pexels.


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Guilherme Torres Correa

Bacharel e licenciado em Filosofia (USP), graduado em Farmácia-Bioquímica (UNESP), especialista em Saúde Pública (Fiocruz), mestre em Educação em Ciências e Saúde (UFRJ) e doutor em Educação (USP). Possui experiência na área de ensino de Filosofia e Ciências Humanas para o ensino médio, bem como de Didática para cursos de licenciaturas, além de experiência na área acadêmica com pesquisas científicas desenvolvidas no campo da Educação e da Saúde Coletiva. Recentemente tem buscado atuar profissional e academicamente na interface entre Envelhecimento, Filosofia e Educação Ambiental. Email: correa.gt@gmail.com. Instagram: @glhrmtc

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