Penso que uma velhice feliz seria uma velhice em que o sentimento de expansão da potência de existir e de agir é tido como factível.
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade)
No primeiro momento desta série de textos (partes 1 e 2), comentei um pouco sobre a velhice a partir da obra de Simone de Beauvoir. Haja vista a riqueza e profundidade da reflexão da autora, não pude abordar todas as questões e dimensões mobilizadas pela filósofa naquele espaço. Porém, creio que foi possível apresentar à leitora e ao leitor alguns pontos essenciais para pensarmos a possibilidade do exercício de uma velhice feliz. Lembremos que Beauvoir destacava a importância da pessoa idosa manter vivo o sentimento de que sua vida ainda está repleta de fins ou habitada por projetos – o que demanda, como vimos, certo grau de liberdade e lucidez. [1] Aqui, na terceira parte da série (e posteriormente na quarta), como eu havia indicado, vamos dialogar, a partir da obra do também filósofo André Comte-Sponville, sobre o tema da felicidade. Vamos lá!
“Como viver?”. Essa é a pergunta que Comte-Sponville entende caber à filosofia, em última instância, responder. Ora, não seria justamente essa uma das perguntas mobilizadoras de uma velhice com sentido, de uma velhice povoada por fins e projetos? Embora assuma que a filosofia tenha seus especialistas, seus profissionais, Comte-Sponville não aceita a ideia da filosofia como uma atividade para iluminados. Para o autor, ela é uma dimensão constitutiva da existência humana e seria a atividade de “pensar nossa vida e viver nosso pensamento” (2002, p. 13). À medida que somos todas e todos dotados de vida e de razão, Comte-Sponville assevera que podemos (e por que não devemos) filosofar. Contudo, salienta o autor, a filosofia não tem posse exclusiva da razão. Ele tem plena consciência de que é possível raciocinarmos sem necessariamente filosofarmos (como o faz a ciência), bem como é possível vivermos sem filosofar (a nossa vida mesma em sua maior parte parece provar isso). Assim, a filosofia seria, para Comte-Sponveille, uma forma de vida mais pensante e um modo de pensamento mais vivo; perspectiva esta convergente com a de Beauvoir, para quem não havia separação entre filosofia e vida, como vimos.
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Nessa direção, Comte-Sponville (2002) sugere que nenhuma ciência diz ao cientista como ele deve viver ou o quanto vale a humanidade, cada ciência é uma disciplina particular que produz conhecimento sobre determinada esfera da natureza e da sociedade. Pensemos, por exemplo, nas ciências que subsidiam a geriatria. A filosofia, por sua vez, não seria nem uma ciência, nem um conhecimento, mas “uma reflexão sobre os saberes disponíveis” (p. 12). Todos os saberes particulares do mundo não são capazes de uma reflexão global sobre o que sabemos, vivemos e desejamos; caberia à filosofia justamente produzir essa reflexão mais sistemática. Quando cada um de nós, o que inclui certamente as pessoas idosas, se encontra em meio a tal reflexão, é porque já estamos na filosofia. Ao fim e ao cabo, “trata-se de pensar melhor para viver melhor” (p. 16); destarte, a filosofia não deixa de ser um “combate”: “Sua arma? A razão. Seus inimigos? A tolice, o fanatismo, o obscurantismo. Seus aliados? As ciências. Seu objeto? O todo, com o homem dentro. Ou o homem, mas no todo. Sua finalidade? A sabedoria: a felicidade, mas na verdade” (p. 14). Ora, que tal parafrasearmos o autor conforme o nosso tema central? Vejamos: “Sua arma? A razão. Seus inimigos? A indignidade social, a tecnocracia, o tédio. Seus aliados? Todos, inclusive as ciências. Seu objeto? A vida, com pessoa idosa dentro. Ou a pessoa idosa, mas na vida. Sua finalidade? A sabedoria: a felicidade, mas na verdade”. Olha a felicidade aí…
Em outra de suas definições do que seria a filosofia, neste caso adaptando uma definição de Epicuro, Comte-Sponville (2015, p. 8-9, grifo no original) sugere que “a filosofia é uma prática discursiva (ela procede por ‘discursos e raciocínios’) que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por fim”. Novamente ela… Ademais, se entendermos, conforme o nosso autor, que a filosofia pode oferecer ferramentas para uma vida mais humana, mais lúcida, mais serena, mais razoável, mais feliz e mais livre – o que tradicionalmente chamamos de sabedoria, ou seja, “uma felicidade sem ilusões nem mentiras (COMTE-SPONVILLE, 2002, p. 15) –, por que então não atuarmos para que as pessoas idosas se apropriem dela?
Nas passagens acima, podemos ver que Comte-Sponville sempre associa a ideia de filosofia com as ideias de felicidade e de verdade. Isso porque a felicidade seria a meta da filosofia, não sua norma. A norma ou o caminho da filosofia é exatamente a verdade (a verdade possível, aproximativa), pois, do contrário, estaríamos todas e todos imersos num mero jogo de ilusões e autoengano. E, obviamente, não estamos aqui em busca de uma velhice fake (para usar uma palavra da moda). Na verdade, nada mais distante da felicidade, conforme veremos, do que uma vida (ou velhice) de autoenganos.
Sobre este ponto, o autoengano, imagino caber aqui um parêntese rápido com Beauvoir. Junto de seu companheiro de vida, o também filósofo e escritor Jean-Paul Sartre, Beauvoir desenvolveu um conceito que pode nos ajudar a pensar determinadas experiências na velhice: a má-fé. O conceito de má-fé busca dar conta daquelas situações em que uma pessoa, em vez de viver sua própria vida – assumindo suas possibilidades de escolha, e a responsabilidade por seus atos –, termina por desempenhar um papel, uma personagem (recordemos sobre o indivíduo nostálgico comentado na parte 2). Em outras palavras, trata-se de uma forma de autoengano, na qual o indivíduo esforça-se em escapar da responsabilidade de suas decisões, quer dizer, o sujeito, para não enfrentar as contradições da vida, termina por enxergar os seres humanos, na verdade a si próprio, como vítima de forças maiores. Julgar que nossa vida é predeterminada não deixa de ser uma postura confortável, o que Beauvoir entende como um estado de “dependência infantil”, outra forma de má-fé (KIRKPATRICK, 2020).
O que está em jogo nesse conceito, vale destacar, não é a negação dos diversos modos de opressão social aos quais as pessoas estão submetidas – o que Beauvoir, por exemplo, como autora referência contra o sexismo e etarismo, jamais negaria –, ou mesmo dos incontáveis problemas de ordem psicológica que a maioria de nós vivencia mais ou menos intensamente; o que está em jogo, aqui, é a constatação daquela dimensão de liberdade, certamente condicionada e amiúde limitada, que temos em muitas ocasiões e frequentemente evitamos assumi-la, seja pelo temor do imponderável da vida, seja pela insegurança de mudar nossas próprias convicções.[2] Portanto, a vida se faz por escolhas – nunca é demais ressaltar: mais ou menos condicionadas e limitadas a depender da situação do sujeito –, e é isso o que nos torna seres éticos, o que envolve a escolha mesma daquilo que desejamos ser e que não ocorre de uma vez por todas, mas de tempos em tempos ao longo da vida, inclusive na velhice!
Pois bem, uma velhice povoada de projetos é uma velhice com sentido, isto é, uma velhice com razões para se viver. E uma velhice feliz, o que seria? E por que seria importante falar sobre felicidade? Não seria ingênuo de minha parte abordar o tema da felicidade hoje em dia, em especial com sua banalização em livros e palestras do tipo “A felicidade em X passos”, “Seja feliz no trabalho”, “Y maneiras de ser feliz”, “A arte da felicidade”, ou mesmo em cursos universitários como “Ciência da Felicidade”? Sim, tenho certeza de que há uma banalização da felicidade.[3] Contudo, suspeito que sua banalização nos indica algo de muito verdadeiro nessa ideia; mais que isso, algo potencialmente humanizador e libertador, mas que por diversos motivos, ou interesses, tem sido relegado a um segundo, terceiro, quarto… plano. Justamente por conta do apagamento do sentido humanizador e libertador da felicidade que escolhi trazer as reflexões a respeito dessa ideia a partir de Comte-Sponville. Não se trata apenas de recuperar tal sentido, mas também de defender o direito (e a possibilidade) de cada pessoa idosa desse Brasil ser feliz. [4]
Certo. E o que é essa tal felicidade? Conforme Comte-Sponville (2003), a felicidade envolve pensarmos um processo, um lapso de tempo para o indivíduo em que a alegria é percebida como imediatamente possível, assumindo que a alegria “nasce quando um desejo intenso é satisfeito”, ela seria como um sentimento de “satisfação momentânea de todo o ser” (p. 21). Em outros termos, a felicidade seria aquela “duração em que temos a sensação de que a alegria pode aparecer de um momento para o outro” (2015, p. 105). Inspirado em Espinosa, Comte-Sponville descreve a alegria como um sentimento de expansão ou intensificação da potência de existir e de agir. Desta feita, penso que uma velhice feliz seria uma velhice em que o sentimento de expansão da potência de existir e de agir é tido como factível. Seria possível complementar esse raciocínio com a reflexão pela negativa, quer dizer, comentando o que seria a infelicidade: “todo lapso de tempo em que a alegria parece imediatamente impossível (em que só poderíamos ser felizes, pelo menos é o sentimento que temos, se algum acontecimento decisivo mudasse o curso do mundo)” (COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 243).
Convenhamos, nesse lugar chamado Brasil, a regra parece ser mais a infelicidade do que a felicidade. Não por outro motivo a filosofia também pode ser considerada “uma reflexão sobre a infelicidade, para vencê-la” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 422). É certo, destaca Comte-Sponville (2015), que para a maioria das pessoas muita coisa vai mal; e tão ou mais certo que isso é o fato da filosofia não ser o mais urgente na maior parte dos casos. Como ressalta o autor: “antes é preciso sobreviver e lutar, ajudar e tratar” (p. 19). Todavia, a ausência de felicidade nem sempre se dá porque tudo não está bem. Na verdade, não é incomum estarmos mais ou menos bem e apesar disso não sermos felizes. Mesmo quando não estamos mal e possuímos certos meios e desejamos ser felizes, ainda assim frequentemente a conta não fecha. Comte-Sponville, então, se indaga: “O que nos falta para sermos feliz, quando temos tudo para ser e não somos? Falta-nos sabedoria” (p. 19). Falta-nos saber viver, no sentido de “uma arte ou um aprendizado” (p. 22).
Aqui preciso fazer uma pausa para falar sobre o sentido da palavra “desejo”. Comte-Sponville (2015) aceita a proposição de Aristóteles para quem a felicidade (o que envolve a amizade, lembremos!) não só é desejável, mas supremamente desejável. Desse ponto, Comte-Sponville desenvolve sua reflexão sobre o desejo com base sobretudo em Platão e Schopenhauer. Qual seria o ponto central dessa reflexão? Desejo é carência. Desejamos a felicidade (ou qualquer outra coisa) justamente porque ela nos falta. Se fôssemos felizes, não desejaríamos a felicidade; no máximo, desejaríamos sua continuação, que não temos ainda. Assim, sempre me falta aquilo que desejo, por isso o sofrimento. Por outro lado, não desejamos aquilo que temos, só se viermos a perdê-lo: “Sofrimento da carência, indiferença da posse (…)” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 423). [5] A condição trágica do ser humano, de acordo com Schopenhauer, seria que a vida é sofrimento. Em algumas ocasiões alcançamos satisfações, o que nos provoca prazer; no entanto, Schopenhauer sugere que nenhuma satisfação é duradoura, ou seja, eis a carência novamente e…. mais sofrimento. Isso implica a impossibilidade, ao menos do seu ponto de vista, da experiência da felicidade.
A falta da felicidade nos leva ao sofrimento; sua presença, nos lança no tédio. Daí Schopenhauer proferir o que Comte-Sponville considera a frase mais triste da história da filosofia: “A vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio” (p. 425). Diante do tédio e da angústia, com frequência buscamos uma saída, algo como a negação da ausência da felicidade, o que costumamos chamar de diversão: “Os homens não se divertem para ser felizes, mas para esquecer que não são” (p. 426), indica Comte-Sponville, inspirado em Pascal. Com certeza não se trata aqui de ser contra divertimentos; cada pessoa tem o direito de se divertir! Todavia, aqui o horizonte é outro: o da felicidade mesma. Mas isso é papo para a parte final de nossa série!
Notas
[1] A propósito, penso que nunca é demais salientar que a defesa da possibilidade do exercício de uma velhice feliz aqui desenvolvida, assume também a luta por condições dignas de vida para todas as idosas e idosos, em especial para aquelas e aqueles mais vulneráveis.
[2] Um exemplo de superação da má-fé, na própria Beauvoir, era sua atitude de se mostrar aberta a novas formas de pensar. Ela não via problemas em assinalar os pontos frágeis ou em acolher os potenciais desses pensamentos, alterando, assim, sua própria relação com o mundo.
[3] Fala-se até na possibilidade de algum remédio que promoveria a felicidade, uma pílula ansiolítica ou antidepressiva absoluta para nos sentirmos em completo bem-estar. Sobre isso, Comte-Sponville (2015, p. 10) comenta o seguinte: “Não digo que nos recusaríamos a experimentá-la, nem às vezes, quando a vida está mesmo muito difícil, até a usá-la com certa regularidade…. Mas digo que quase todos nós nos recusaríamos a nos satisfazer com ela e que, em todo caso, nos recusaríamos a chamar de sabedoria essa felicidade que deveríamos a um remédio.”
[4] Nessa direção, Steptoe (2019), em texto sobre a importância da felicidade no campo da gerontologia, sustenta haver boas evidências de que o bem-estar subjetivo está associado à qualidade de vida de pessoas idosas.
[5] Comte-Sponville (2015) cita alguns exemplos dessa situação do desejo que se esvai assim que se realiza ou como sua realização não basta à felicidade: a criança que deseja loucamente um presente, mas pouco depois da euforia de ganhá-lo, a felicidade parece apontar para outro lugar; o desempregado que pensa “como eu seria feliz se tivesse um trabalho”, porém, quando consegue um emprego e se alegra com isso, com justiça, não demora muito para o trabalho não ser mais exatamente uma felicidade, mas… um trabalho; fulano, ao perceber em beltrano uma falta e imaginar como beltrano seria feliz se possuísse o que lhe falta, pensa que deveria ser feliz, já que possui justamente esse objeto faltoso ao outro, mas a felicidade não vem com esse esforço de pensamento; por fim, o caso da pessoa apaixonada que sofre na ausência da pessoa amada, mas quando ela está presente não demora para outro sentimento se insinuar… Instala-se, nesse momento, conforme Schopenhauer, o tédio.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. Balanço final. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.______. A velhice. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
COMTE-SPONVILLE, André. Uma educação filosófica e outros artigos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. A felicidade, desesperadamente. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020.
STEPTOE, Andrew. Investing in happiness: the gerontological perspective. Gerontology, v.65, n.6, pp. 634-9. 2019.
* O presente trabalho é resultado parcial de pesquisa que foi selecionada pelo Edital Acadêmico 2022: envelhecer com futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento e Longeviver.
Foto destaque de Jonathan Borba/pexels.
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