Uma mãe que, com certeza, soube plantar afetos ao longo da vida e que agora colhe todo amor cultivado ao longo do tempo. A vida como obra de arte e a velhice como o ápice da estética da existência.
O cuidado afetuoso é evidente em muitas relações. Impossível não perceber o tanto de amor que existe no relacionamento das suas filhas com ela que, faz anos, participa do Faça Memórias, projeto que faço parte e que acontece semanalmente no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia, o MuBE.
No Faça Memórias, as obras de arte expostas no museu são temas de trabalhos e conversas, além de servirem de ferramentas para um cuidado absolutamente especial: o cuidar de si.
Quem nunca se deparou vivendo algo tão importante que, imediatamente, é refletido através de uma sensação única de bem-estar?

Tenho o privilégio de trabalhar com a arte como possibilidade de cuidado e a exposição “Burle Marx: Arte, Paisagem e Botânica”, em cartaz no MuBE, na cidade de São Paulo até 26 de maio, é uma prova do que o ato de apreciar uma obra de arte é capaz de fazer para os idosos com problemas de esquecimento.
O objeto artístico colabora para que a atenção, perdida pela patologia seja intensificada no momento do olhar a obra. A exposição de Burle Marx, que tem a curadoria de Cauê Alves, apresenta 70 trabalhos, entre desenhos, pinturas, esculturas, objetos e registros de expedições científicas que, semanalmente, tem servido de apoio ao grupo que busca no Faça Memórias, uma oportunidade de existência social além do estímulo cognitivo por meio da obra de arte.
E a vida se fez especial em agosto de 1909 quando nascia, na cidade de São Paulo, Roberto Burle Marx, artista que mostraria ao mundo o talento em sua mais pura amplitude.
Burle Marx tem encantado o grupo de senhoras que encontram no espaço expositivo do MuBE, um verdadeiro diamante multifacetado com todo talento e diversidade do artista que foi escultor, pintor, gravurista, botânico, tapeceiro, ceramista e cantor de ópera.
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Filho de Cecília Burle, recifense, pianista e sensível, sua mãe influenciaria lindamente a vida do menino que, com ela, aprende o gosto pelas artes e pelas plantas.
Quando seu pai, o judeu alemão Wilhelm Marx, decide mudar a empresa de couros para o Rio de Janeiro, o artista passa então a viver na cidade que o acolheria ao longo da vida, ao mesmo tempo que exalaria a beleza natural, presente em sua obra.
Aos 19 anos, com problemas de visão, Burle Marx vai para a Alemanha em busca de tratamento, e se encanta com a arte dos grandes mestres. Ao voltar para o Brasil, decide estudar Artes Plásticas e passa a caminhar lado a lado com Oscar Niemeyer, Portinari, Lúcio Costa entre outros.
O amor pelas plantas, adquirido sob influência da sua mãe, o tornou um dos maiores paisagistas do mundo.

Quando Burle Marx começa a projetar jardins, a flora tipicamente brasileira ganha destaque nos projetos do artista que deixou de replicar os famosos jardins europeus, para mostrar um novo paisagismo ao Brasil e ao mundo. Burle Marx dizia que criar um jardim era muito semelhante a pintar um quadro só que ao invés de tintas coloridas, sua matéria é o colorido das plantas pensadas para os espaços. Burle Marx tem jardins projetados no mundo inteiro e a exposição do MuBE é um verdadeiro deleite para os amantes de artes, arquitetura e de plantas.

Semana passada o carinho do grupo das senhoras, envolveu a profissional Flávia Vidal, restauradora e responsável pela conservação das obras desta exposição.
Semanalmente a vejo cuidar das obras de Burle Marx com o mesmo carinho que observo nas filhas daquela senhora ao cuidar da mãe. Uma mãe que, com certeza, soube plantar afetos ao longo da vida e que agora colhe todo amor cultivado ao longo do tempo.
A vida como obra de arte e a velhice como o ápice da estética da existência.
O trabalho da Flávia é impecável e muito técnico. A arte precisa de cuidados diversos para se conservar fiel à intenção do criador. Penso nas velhices e no cuidado carinhoso das filhas daquela senhora que carrega consigo uma delicadeza e simplicidade que refletem nos meus dias. E toda segunda-feira, dia do nosso encontro, ela me faz pronta para enfrentar a semana. Creio que ela não tem noção do bem que irradia com toda sua sabedoria e riqueza.
A obra de Burle Marx emociona, e Flávia sabe exatamente o que fazer para manter a expressão do artista intacta a fatores como tempo, umidade, luz etc. Em seu trabalho, assim como a relação das filhas com a doce senhora, a essência da obra é conservada. A arte pode então ser sentida, vista e admirada.

Nosso passeio pela exposição, naquela semana, teve a companhia da Flávia que docemente ia contando ao grupo sobre seus afazeres. Não foi difícil associar os cuidados que ela demonstrava ter com as obras com os cuidados que precisamos ter com nossa própria vida.
As velhices estavam ali presentes em cada explicação que Flavia dava ao grupo. “É preciso cuidar para não precisar restaurar, mas é preciso saber como cuidar corretamente para não danificar a obra”, dizia ela.
Estávamos falando da arte ou de vida? Flávia nos mostrou restauros já realizados em uma grande pintura de Burle Marx e por nós, imperceptíveis. Tudo ia se misturando em nossos corações e nos olhares que observavam as marcas deixadas pelo tempo na pintura do artista. Naquela exposição, em companhia da Flávia Vidal, entendíamos a vida como obra de arte. Imediatamente, a fala do filósofo francês Michel Foucault que muito nos fez pensar sobre o cuidar de si como cuidado essencial à vida, me veio ao pensamento.
O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos e à vida; que a arte seja algo especializada ou feita por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Porque deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte e não nossa vida?” (Foucault, 1995a, p.261)
E como obra de arte aprendemos a viver. Ou não? Cuidamos de nós mesmos para evitar maiores danos? Esquecemos de cuidar de si ao cuidar do outro? As marcas deixadas pelo tempo vão constituindo uma nova estética de existência e com elas seguimos a vida. Vidas e velhices marcadas por amores vividos, vidas e velhices marcadas por sofrimentos insustentáveis, marcas que se curam mas não se apagam e que nos mostram registros de uma história. Da pintura ou da vida? Do que falamos agora?
Sim, Foucault está certo. A vida como obra de arte e a velhice como o auge do viver!

Foi uma manhã repleta de aprendizados e reflexões. Tal como as obras de Burle Marx, tal como o trabalho da Flávia Vidal, viver requer cuidados.

Obras arejadas, na arte encontramos um respiro profundo a nosso favor.
Segunda-feira, novamente a conversa será com a arte de Burle Marx. Entre uma atitude e outra ao nos favorecer, fazemos da vida a nossa mais valiosa obra.
Quanto a senhora que me ilumina, meu afeto, enorme e verdadeiro como agradecimento por cada instante ao seu lado.
Serviço
“Burle Marx: Arte, Paisagem e Botânica”, em cartaz no MuBE, na cidade de São Paulo na Rua Alemanha 221.
De terça a domingo até 26 de maio.
Entrada gratuita.
Para saber mais sobre o Projeto Faça Memórias acesse: https://www.facebook.com/facamemorias/ www.facamemoriasemcasa.com.br
Fotos: Cristiane Pomeranz
