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Um ensaio sobre o fim

Entrego-lhe o segredo dos segredos. Os espelhos são portas por onde a Morte entra e sai. Não conte a ninguém. De resto, olhe-se num espelho durante toda a vida e você verá a Morte trabalhando como as abelhas, numa colmeia de vidro. Adeus. Tenha boa sorte! (trecho do filme “Orfeu”, de Jean Cocteau, sobre “Heurtebise”)

Escrito por Barão de Lavapés


As primeiras imagens são de um céu impressionantemente azul, de um oceano e seus mistérios, de um homem de aparência simples, ponderada e calma que se mistura com a silenciosa e expressiva natureza. Sim, esse é ele, o escavador Basil Brown, acompanhado de sua bicicleta, a caminho da propriedade da Sra. Edith Pretty em Sutton Ho, sul da Inglaterra.

De terno surrado, reservado,  poucas palavras, mas de conteúdo inspirador, podemos resumi-lo como um desses homens que não vemos todos os dias, ser humano raro, sensível e de dignidade ímpar.

Um sujeito que aprendeu o ofício com o pai que aprendeu com o avô e assim por diante. “Faço escavações desde pequeno”, diz ele à Sra. Pretty ou, melhor dizendo, Edith.

É a herança humana e seus significados que nos acompanham e nos enriquecem por toda a vida.

Estamos em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial e sob a ameaça de Hitler à humanidade.

Antes que eu esqueça, essa é a história de uma das maiores descobertas  arqueológicas da Europa, contada no filme britânico “A Escavação” (The Dig, 2021, direção Simon Stone) e Basil Brown, interpretado magistralmente por Ralph Fiennes, será nosso guia nessa aventura verdadeira e comovente que muito nos ensina sobre a vida e seu respectivo e inevitável fim.

Motivada por uma espécie de pressentimento que nunca a abandonou, aliás sempre a intrigou, Edith (Carey Mulligan ) contrata nosso homem, o experiente Brown para investigar o terreno de sua propriedade, um local repleto de enigmas e mistérios a serem desvendados.

– Brown: Acho que estamos em um cemitério… Viking, talvez mais antigo. Mas qual o seu interesse na escavação, Sra. Pretty?

– Edith: Meu interesse em arqueologia começou como o seu, quando eu era pequena. A casa em que cresci foi construída em um convento cisterciense. Ajudei meu pai a escavar a abside.

– Brown: É impressionante o passado, não é?

Escavando o “passado”, o que nem Brown, nem Edith imaginavam é que no coração daquelas terras se escondia um dos tesouros mais importantes do Reino Unido e que, anos mais tarde, os artefatos anglo-saxões encontrados seriam levados ao British Museum.

Na fase inicial de escavação, fica evidente o sentimento que parece nascer entre esses dois opostos pertencentes a mundos tão distantes, mas, ao mesmo tempo tão próximos.  De um jeito discreto, elegante, acontecem as primeiras trocas de olhar, um esmero, uma delicadeza na escolha da roupa, uma atmosfera que cresce no próprio silêncio e no desconhecido de uma suposta ou, quem sabe, sonhada relação.

Quando os achados se tornam reais e passam a ser de conhecimento de outros pesquisadores, a história, que se aproximava de um amor entre seus diferentes, dá espaço ao estudo sobre os legados humanos, a efemeridade da vida e a iminência da morte.

Brown, na sua generosidade, explica a descoberta para o pequeno Robert, filho de Edith: “É um barco funerário que foi enterrado no monte, talvez um túmulo. Espero que seja o túmulo de um grande homem, um guerreiro ou um rei. Devem ter carregado o barco do rio até aquela colina. Devem ter amarrado o barco com corda e puxado sobre troncos. Provavelmente centenas de homens e cavalos. Pode imaginar a despedida que fizeram para ele? As canções que cantaram? É bem mais antigo que os Vikings, acho que é anglo-saxão.”

Basil Brown

– Edith: As pessoas que enterraram o barco no que acreditavam?

– Brown: Bom, estavam navegando para algum lugar, não é? Desde o submundo, até as estrelas.

Para Edith, a morte nunca esteve tão presente, mas e depois? Não se vive com uma ameaça sobre a qual não se tem nenhum poder.

Como podemos encarar a morte como um fato da nossa existência? Não haveria uma brecha, uma saída?

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Revoltado com a própria impotência, Robert desabafa: “Sei que ela está doente. Eu sei. Não há nada que eu possa fazer. Quando o meu pai morreu, todos disseram que eu tinha que cuidar da minha mãe. E eu fracassei.

– Brown: Robert, todos fracassamos, todos os dias. Em certas coisas não se pode ter êxito, não importa o quanto tentemos. Sei que não é o que quer ouvir.

Trazendo a finitude como tema, expressa na fragilidade cardíaca de Edith, na morte anunciada, a história nos convida a pensar como as coisas da vida passam, escorrem, e quando vemos, tudo termina inesperadamente, sem aviso, sem consolo. É o fim do nosso caminho, mas… como suplica Edith “ainda não, por favor, ainda não”.

Brown vê as relíquias – “emissários do outro mundo” – não como um túmulo de uma pessoa, visão de Edith, mas sim como uma vida que foi revelada “e é por isso que escavamos”.

Na verdade, a procura é pela vida e não pelo fim dela.

Nesse trajeto da descoberta dos achados arqueológicos, ainda conhecemos a jovem Peggy Piggott (Lily James) e Rory Lomax (Johnny Flynn) e suas reflexões sobre as relíquias, seus significados e as memórias que passam de geração a geração.

– Edith: Nós morremos e apodrecemos. Não vivemos para sempre.

– Brown: Eu discordo. Desde a primeira impressão humana na parede de uma caverna, fazemos parte de algo contínuo. Então, nós não morremos realmente.

E no berço de um barco misterioso, Robert conta a sua própria história à mãe, a história inventada pela inocência de um menino que mal compreende que “Daquela Mais Temida”, nenhum de nós escapamos:

“Está vendo, mãe? Estamos navegando no cosmos. Nós vamos para o Cinturão de Orion para levar a rainha para casa. Este barco é dela. Seu povo lhe deu um tesouro para sua longa viagem. E ela ficou triste quando o barco chegou, porque sabia que deixaria todos para trás. E ela estava preocupada que não ficariam bem sem ela, mas ela sabia que tinha que seguir o rei até o céu. Então, ela partiu da Terra em direção ao cosmos. E o espaço é engraçado. O tempo é diferente lá e 500 anos podem passar num piscar de olhos. E quando a rainha olhou para a Terra, ela viu que o filho havia crescido e que agora era astronauta. E ela sabia que, quando ele fizesse sua primeira jornada até as estrelas, ela estaria lá para encontrá-lo.”

Sim, talvez seja esse o maior presente: saber que ao desembarcarmos do barco mágico, um alguém muito querido esteja a nossa espera.

Mas em 1939, a realidade veio como um golpe certeiro: A Inglaterra entra em guerra com a Alemanha e a Morte encontra, finalmente, seu protagonismo pelas mãos de Hitler.

Ainda assim, a morte é o destino que todos nós compartilhamos. Ninguém nunca conseguiu escapar. E assim é como deve ser, porque a morte é muito provavelmente a principal invenção da vida. É o agente de mudança da vida. Ela limpa o velho para abrir caminho para o novo. (Trecho do discurso de Steve Jobs na Universidade de Stanford, em 2005)

O tesouro de Sutton Hoo sobreviveu à Segunda Guerra Mundial. Foi escondido com segurança nos túneis do sistema ferroviário de Londres. Ele foi apresentado ao público nove anos após a morte de Edith. O nome de Basil Brown não foi mencionado.

Apenas recentemente a importante contribuição de Basil à arqueologia foi reconhecida, seu nome aparece junto ao de Edith na exposição permanente do Museu Britânico.

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Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: lucianahelena@terra.com.br.

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