No mezanino da casa projetada pelo próprio filho, Glênio Bianchetti guarda um acervo que não é exatamente o de gravuras e pinturas, mas é tão valioso quanto. Distribuída em seis livros com dimensões que ultrapassam um metro está toda a biografia do artista contada de modo particular. Em enormes folhas de cartolina repousam recortes de jornais, esboços de ilustrações, rascunhos de desenhos, fotografias e convites amarelados que contam a trajetória de Glênio. Foram guardados ao longo da vida pela mulher, Ailema, para catalogar os momentos mais importantes da arte desse gaúcho nascido em Bagé há 77 anos. ‘‘É meu computador antigo. Tudo que é dúvida que tenho, consulto’’, brinca. Foi nesses livros de capa dura que Simone Menegale pesquisou para contar a vida do artista em G. Bianchetti, a biografia cujo lançamento ocorre hoje no Conjunto Cultural da Caixa.
Nahima Maciel
O formato do livro segue a linha dos álbuns biográficos montados por Ailema. O texto de Simone, ex-nora do artista, é fruto de pesquisa, mas também de certa intimidade com o biografado. ‘‘Ela conhece bem meus casos, minha vida, convive muito comigo.’’ Além da biografia, dividida em décadas e intercalada com imagens, um texto de Ferreira Gullar analisa a obra do artista. O crítico e poeta é enfático ao descrever o equilíbrio entre conteúdo social e o que chama de ‘‘invenção gráfico-pictórica’’. O engajamento social é algo marcante na geração de artistas gaúchos à qual Glênio pertence e que reúne nomes como Carlos Scliar e Glauco Rodrigues.
Com 35 cm de altura, a publicação tem o tamanho ideal para reproduzir o que Glênio considera seu caminho na pintura. Entre as 139 obras há um extrato de cada fase. Não foram escolhidas pelo próprio artista — ele preferiu se eximir de fazer uma seleção que ficaria muito pessoal. O importante é observar como a liberdade criativa e as vivências pessoais de Glênio encontram reflexo nas pinturas.
‘‘Nunca fui de desenvolver teses’’, explica. ‘‘Pinto o que está à minha volta. Por exemplo: no início, as minhas paisagens representavam muito aquele frio terrível do Sul.’’ A uniformidade da obra fica explícita na escolha pelo figurativo, ao qual Glênio fez pouquíssimas concessões. ‘‘Nunca me senti bem fora da figuração’’, revela. Mesmo assim, é possível notar traços de abstração especialmente nas faces dos personagens das pinturas. Não há expressão nesses rostos cujas feições são apenas insinuadas. ‘‘É um desafio. O rosto é uma bola e no entanto você sente a figura dentro dela.’’
Também hoje, para marcar o lançamento do livro, o artista inaugura exposição com 31 telas, todas datadas deste ano. Nenhuma delas aparece no livro e a maioria revela a versão plástica para uma nova preocupação na vida do artista. Glênio é avô de 13 netos e pai de seis filhos. São todos vizinhos, o que permite ao pintor observar as peripécias das crianças da família. Nas telas, brincadeiras infantis se fundem com símbolos circenses. ‘‘Estou forçando esse tema porque acho que a brincadeira de criança tem muito do trabalho do circo’’, explica.
Desencanto
À capital, Glênio chegou em 1962 para dar aulas na Universidade de Brasília. Saiu em 1965, junto com a leva de professores que pediu demissão por conta da ditadura. Voltou em 1988 para ficar apenas cinco anos. A aposentadoria veio como espécie de lacre para um período marcado por mais desencantos que encantos. ‘‘A universidade, aquela de quando vim para cá, no início chegou a me empolgar porque veio a elite intelectual do país. Era outro tipo de gente, não aquela coisa meio ingênua lá do Sul. Mas a coisa foi acabando com a ditadura. E no fim se tornou um espírito muito provinciano’’, lamenta. O provincianismo, ele identifica até hoje na vida da cidade, em especial no meio cultural. ‘‘A parte cultural da cidade está sendo invadida por um consumismo fuleiro, vazio, sem profundidade.’’
Glênio faz parte de uma geração em que a vivência em grupo era cultivada e perseguida. Ao lado de Scliar e Glauco Rodrigues, fundou o Clube da Gravura de Porto Alegre, espécie de congregação em que o exercício e o intercâmbio funcionavam como combustíveis. A gravura teve lugar importante na vida do artista e a ela está reservado o projeto de um segundo livro.
‘‘Comecei a gravar em 1950, quando conheci o Scliar. Ele veio da Europa e trouxe as ilustrações de O caminho da fome, que fez com Jorge Amado. Aí pegou a febre da gravura e todo mundo começou a fazer’’, conta, lembrando a ligação com os clubes de gravuras de outros países e as trocas que possibilitavam realizar média de cinco exposições simultâneas em vários países.
Glênio tem nostalgia do convívio em grupo e das trocas de idéias proporcionadas pelos encontros de artistas — prática, segundo ele, perdida nos tempos em que o acesso à informações exigia passagem por caminhos mais tortuosos que as trilhas percorridas hoje em dia.
G. BIANCHETTI – Primeiro livro dedicado à obra do artista. Editora Bertoni, 154 páginas. R$ 100,00.
____________________________
Fonte: Correio Braziliense. Disponível Aqui 02/12/2004.