Um ano de brinde

Originariamente redigida, a Constituição Republicana em vigor prescrevia como garantia dos juízes a vitaliciedade que, no primeiro grau, só seria adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que estivesse vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado (artigo 95, I).

Sérgio Monte Alegre *

 

Isso nada obstante, dentre os princípios de compulsória observância pelo Estatuto da Magistratura, a ser formalizado em lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, deveria constar o da aposentadoria compulsória, com proventos integrais, nos casos de invalidez e aos 70 anos de idade (artigo 93, VI), no que interessa aos limites deste artigo. Sobreveio então a Emenda 20/98, que manteve assim uma como a outra, conquanto remetesse a inativação dos magistrados e a pensão dos seus dependentes para a disciplina do artigo 40, modificado.

Quanto aos ministros do Tribunal de Contas da União, lhes foram estendidas às garantias, prerrogativas, impedimentos e vantagens dos ministros do Superior Tribunal de Justiça. No âmbito dos estados, embora não apenas destes, aos membros da corte congênere caberia o tratamento dispensado aos desembargadores, por servil submissão das Constituições locais ao modelo federal, segundo uma simetria alçada à categoria de princípio por interpretação construtiva do Supremo Tribunal Federal, idosa de vários anos (artigo 75 da CF), inalterado.

Aliás, é exatamente o que está consignado no artigo 71, parágrafo 2º, da Constituição do estado de Sergipe. Portanto, nenhuma dúvida séria aflige o leitor constitucional quanto ao limite de idade, indiferente o tratar-se de juízes ou ministros e conselheiros de Contas.

Aqui, uma curta reportagem da aposentadoria de juízes, por idade, na trajetória acidentada do constitucionalismo brasileiro, que vai da exaltação à tragédia. Na Constituição Imperial de 1824, nada se dispunha a respeito, no que foi seguida pela primeira Constituição Republicana, a de 1891.

Já a Constituição de 1934 inovou na matéria, ao fixar a idade máxima de 75 anos (artigo 64, alínea a), e que mereceu de Pontes de Miranda, seguramente o seu melhor intérprete, o seguinte comentário: “A aposentadoria compulsória dos juízes federais, de qualquer espécie, só se dá aos 75 anos de idade, absurdo limite que os membros da Assembléia constituinte não tiveram o pejo de adotar”. (Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, Tomo 1, página 609, comentários ao artigo 64).

Posteriormente, reduzida para 68 anos (artigo 91, a) na Constituição de 1937, e ampliada para 70 anos na Constituição de 1946 (artigo 95, parágrafo 1º), que se manteve na Constituição de 1967 (artigo 108, parágrafo 1º), na Emenda 1, de 1969 (artigo 113, Parágrafo 1º), e, enfim, na atual (artigo 93, VI).

Leitura atenta dos textos conclui que o conceito de vitaliciedade, nas duas primeiras Constituições, coincidia com a formulação lingüística do cotidiano — perpetuidade no exercício do cargo — mas logo a seguir acabou redimensionado e confinado a um presumível período de vida útil, sensata e produtiva, fixado em números de aniversários. Vitaliciedade pro tempore. Vitaliciedade insólita, exótica, uma esquisitice, degenerada contradição nos termos. Mas o certo é que Constituições Republicanas, a partir da Carta de 1934, dele se apoderaram e lhe deram densidade diversa daquela que designava o que se detém por toda a vida, tal como sucede com as monarquias, vitalícia ademais de hereditárias. Contudo, não só isso, o que já seria muito.

A dogmática constitucional, inspirada na novidade, foi adiante para assinalar como advento desse termo certo o haver o juiz atingido, alcançado, chegado aos 70 anos. Era assim que estava escrito na Constituição de 1937, no respeitante aos funcionários públicos (artigo150, d). Somente nela. Todavia, essa interpretação prevaleceu e hoje é impressionante a sua unanimidade, na doutrina tanto quanto na jurisprudência, como intérpretes de modelos normativos de qualquer estatura. Trata-se de uma dessas verdades, contra a qual nada se pode objetar talvez sem o risco do estigma, da marca de ferro quente, ou da descompostura da heresia. Quem sabe não se está diante da hoje superada verdade de que o sol é que gira em redor da terra, ou a de que a mulher é menos inteligente do que o homem porque tem o cérebro menor, ou que brancos nasceram para a liberdade e negros para a escravidão.

Não foi verdade que livros foram empilhados uns sobre os outros e colocados no Índex para não serem lidos? Em razão dessa verdade, em quantos séculos se atrasou o progresso da civilização? Joana D’Arc não foi queimada viva na fogueira? Durou quanto tempo a verdade de que homens nasciam para serem nobres e outros para plebeus? Foi historicamente falso que Salomão teve 300 esposas e 700 concubinas? Era imoral? A nossa cultura condena o suicídio, mas não é verdade que em nome da jihad a prática se vem popularizando?

Quantas vezes a humanidade foi vítima dessas verdades, repetidas a mais não poder? Na vigência da Constituição de 1981, a cláusula da irredutibilidade de vencimentos dos magistrados foi interpretada por João Barbalho U.C. como excludente inclusive da incidência de impostos, tal como era nos Estados Unidos da América até mesmo durante a Guerra da Secessão (Constituição Federal Brasileira, Comentários, Senado Federal, Secretaria de Documentação e Informação, 1992, no qual se relata casos no Brasil e nos Estados Unidos, de devolução pela Fazenda Pública de imposto cobrado a magistrados, página 57).

Hoje, todavia, a “verdade” transformou o que era uma garantia funcional em odioso privilégio. Durante que número de anos se aplicou neste país o prejulgado trabalhista até que o Supremo Tribunal Federal considerasse revogado o artigo 902 da CLT, na Representação 946? Sabe-se lá que causas não teriam tido solução diferente? Por qual tempo se teve como inconcussa a doutrina de que a lei inconstitucional era lei nenhuma e por isso a decretação de inconstitucionalidade teria sempre efeito ex tunc?

Por quantos longos anos somente o procurador-geral da República estava legitimado para suscitar o controle concentrado de inconstitucionalidade de leis e demais atos normativos federais ou estaduais? Foi curto o tempo de duração da expressão funcionários públicos, hoje em desuso salvo do Código Penal da época do fascismo? De quanto tempo precisou o Supremo Tribunal Federal para admitir que a lei orçamentária pode ser objeto de controle abstrato, que antes negava? E o pretório excelso também não se desdisse a respeito de sua afirmativa inicial de que o Banco do Brasil não estava sujeito ao controle do Tribunal de Contas da União?

E dias atrás a Corte Suprema não alterou a sua jurisprudência tradicional acerca do momento da comprovação dos requisitos para a investidura de cargo inicial da carreira do Ministério Público, que até então eram exigidos somente por ocasião da posse? Ou talvez fosse mais apropriado dizer que o Supremo não muda de opinião e sim evolui? Vinicius de Moraes foi exonerado da diplomacia em 1969, durante os anos de chumbo, como bêbado, boêmio e subversivo, e na noite de 8 de setembro em curso foi homenageado pelo próprio Itamaraty, com toda a pompa e circunstâncias justamente devidas, como o mais novo embaixador brasileiro. Bem por isso alguém escreveu, a propósito do memorável encontro entre o Nazareno e Pilatos, que este perguntou àquele: “Verdade? O que é isso?”

Vitaliciedade. Setenta anos de idade. A questão a resolver e a proposta de nova leitura

O que não se alterou, na linguagem convencional que não foi redefinida no vocabulário constitucional durante cada alvorecer e cada entardecer, ao contrário da vitaliciedade, foi o conceito de anos de idade. Ora, ano é o tempo que a Terra leva para completar uma volta em torno do Sol ou medida da idade (Koogan/Houaiss, Edições Delta, 1994). E anual é o que dura um ano, que se dá uma vez por ano (idem). Nessa toada, o que se dá uma vez por ano é o aniversário, ocasião em que se completa um ou mais anos de um acontecimento: data aniversária, dia em que se faz mais um ano de vida (ibidem).

E ninguém ignora que este ano é o civil, compreendido como “o período de 12 meses contados do início ao dia e mês correspondente do ano seguinte” (artigo1º da Lei 810, de 6/9/49). Tais formulações lingüísticas bem poderiam ter sido reformuladas pelos diversos textos constitucionais, alguns dos quais morreram na infância da idade ou na adolescência, ou mal ingressados na idade adulta. Entretanto, não o foram. E isso só pode significar que se o vocabulário constitucional assume uma palavra ou expressão com o sentido convencional do seu tempo e do seu momento histórico e não as redefine, podendo fazê-lo, então é porque quis preservar o seu conteúdo significante.

Assim, quando a Constituição se serve dos anos para medir a idade, o que estará dizendo? Afinal, como se desejaria interpretada? Inobstante alguns documentos legislativos antecipem regras de hermenêutica, como a Lei de Introdução ao Código Civil (artigo 5º) e o Código Tributário Nacional (artigo107 a 112), a verdade é que as leis fundamentais brasileiras não o costumam fazer, ou mais exatamente, se têm invariavelmente se evadido dessa tarefa, reversamente ao que aconteceu com a Constituição Portuguesa de 1976, escrupulosa no catálogo e na eficácia dos direitos fundamentais, ao ponto de estatuir que:

“Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”. (artigo 16º, 2).

No Brasil, talvez unicamente a Constituição do estado de Sergipe resolveu romper com a tradição, ousar ser contemporânea, diferente, exemplar único. Com efeito, diz a carta sergipana: “Esta Constituição será interpretada de modo que os seus dispositivos tenham, só por si, a maior eficácia possível” (artigo 277), no que fez muitíssimo bem, seguindo as melhores vertentes do pensamento criativo, inovador, arejado, sem preconceitos de escola, de que são exemplos luminares Tobias Barreto, Fausto Cardoso, Silvio Romero, Gumercindo Bessa e Laudelino Freire, espíritos livres e inquietos que nunca juraram fidelidade a reputações feitas, prontas e acabadas, nem a aceitar que a Ciência tivesse nome próprio. Jamais prestaram compromisso de subserviência intelectual ao argumento de autoridade, mas apenas à autoridade do argumento.

Pois bem. Nos dias que correm, vige a Constituição de 5 de outubro de 1988, essa mesma que, pela primeira vez na história do constitucionalismo nacional, declarou os direitos e garantias fundamentais antes de desenhar a organização política e administrativa do Estado brasileiro (Títulos II e III, respectivamente), o que longe estar de ser um indiferente jurídico; justo ao contrário, significa que o Estado brasileiro foi organizado em termos de garantir e promover os direitos fundamentais — dentre os quais o da liberdade de trabalho, ofício ou profissão — para realizar os objetivos essenciais da criação de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 18 c/c o artigo 5º e o artigo 3º, I a IV).

A carta que, sobre prescrever que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, antecipou com a autoridade da sua supremacia normativa os princípios sobre os quais se assenta: soberania; cidadania; dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e o pluralismo político (artigo 1º, I a V). A Lei que, como visto acima, incluiu no rol dos direitos fundamentais a liberdade de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (artigo 5º, XIII).

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O Estatuto Supremo que fez do trabalho o primado da ordem social (artigo 193), após torná-lo fundante da ordem econômica (artigo 170). Malgrado o candente discurso normativo-constitucional, insiste-se em ter como boa, firme e valiosa, uma interpretação vincada de autoritarismo, de soberba, de irracionalidade, de excesso, que pressupõe no juiz septuagenário incapacidade absoluta para o desempenho da judicatura, arrastando por atração membros de Tribunais de Contas e quantos mais. Chega a ser bizarra, paradoxal, essa presunção em uma Constituição que proíbe o preconceito de idade (artigo 3º, inciso IV) e garante a liberdade de trabalho, ademais de elevá-lo a fundamento republicano e da ordem econômica, e primado da ordem social.

Mas já não se disse que o constituinte tudo pode? A ele, ao louco e ao poeta tudo se permite.Ou então se lhe irrogam loucuras, desatinos e quejandos. Sequer se tem em conta, nesse modo de apreensão e compreensão do fenômeno normativo, já não a degeneração da vitaliciedade judicante, que parece ser fato consumado. Vai-se ao nível de entre duas interpretações escolher aquela que amplia uma exceção, o que é inadmissível no homem de leis de boa inspiração, conforme, aliás, severa reprimenda do Supremo Tribunal Federal (MS 23.990/DF, no Informativo 235/01, relator ministro Celso de Mello), antecedida da advertência de quem é chamado o “príncipe da hermenêutica”, Carlos Maximiliano, a propósito de como se deve interpretar restrições a regras gerais: “Liberdade — Interpretam-se estritamente as disposições que limitam a liberdade, tomada esta palavra em qualquer das suas acepções: liberdade de locomoção, de trabalho, trânsito, profissão, indústria, comércio, etc.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, nona edição, Forense, p.231, sem o negrito no original).

Tão antiga é essa lição que parece remontar mesmo ao Digesto, liv. 50, Tit.17: “em todas as coisas maior valor se atribua a liberdade”.(Ob. cit., página 231, idem).Todavia, realmente não bastava ao espírito do tempo, ao constitucionalismo escrito a partir da segunda Constituição Republicana dizer que vitaliciedade não é vitaliciedade. Era preciso mais nessa marcha da insensatez. Tornava-se necessário reforçar pela hermenêutica que os 70 anos terminam onde começam. Quanta deformação e quanta iniqüidade. Sim, porque em nenhum momento a Constituição diz, como dizia a de 1937 para os funcionários públicos (artigo156), que a aposentadoria compulsória se dá ao alcançar, chegar, atingir o juiz a idade de 70 anos.

O que está escrito, em bom vernáculo (expressão tão a gosto do ministro Marco Aurélio), é que a compulsoriedade ocorre aos 70 anos de idade (artigo 93, VI), o que é bem diferente. Decorridos tantos anos, ainda é atual a lição de Martin Luther King, na sua incansável luta pelos direitos civis dos homens de cor preta: “Não me interessa saber o que dizem as vossas leis e sim o que diz a jurisprudência dos vossos tribunais”.

E para evitar juízos depreciativos, acusações apressadas de fetichismo gramatical, sempre presentes em espíritos intolerantes, nunca é demais lembrar que quando se diz “fulano rouba, mas faz” não se está dizendo o mesmo de quando se diz que “ fulano faz, mas rouba”. O elogio imerecido é evidente no primeiro caso; a censura justa, no segundo. Ou então que meritíssima é equivalente de meritíssima. Ou que precatório é o mesmo que predatório. Em Direito, a linguagem não tolera que com ela se tomem intimidades; deseja-se levada a sério. Oportuna a lição de um mestre da hermenêutica: “Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. O sentido das palavras estabelece-se com base no uso lingüístico, o qual pode ser diverso conforme os lugares e os vários círculos profissionais. Normalmente, as palavras devem entender-se no seu sentido usual comum, salvo se dá conexão do discurso ou da matéria tratada derivar um significado especial técnico” (Interpretação e Aplicação das Leis, por Francesco Ferrara, 3º edição, Armênio Amado-Editor, Sucessor-Coimbra,1978,página 139, sem o negrito e o itálico).

No mesmo sentido, dois outros inexcedíveis doutrinadores, Carlos Maximiliano, no seu Hermenêutica e Aplicação do Direito, nona edição, Forense, e Alípio Silveira, em Hermenêutica no Direito Brasileiro, (Editora Revista dos Tribunais, Dezembro de 1968). Além do que o empenho está em situar à palavra no contexto do discurso normativo-constitucional, articulando-a com outras sistemicamente e atendendo à sua teleologia, que radica na centralidade dos direitos fundamentais sobremodo na dignidade da pessoa humana e na valorização do trabalho, estes últimos como fundamentos republicanos.

Agora, retomando o caminho principal. Quando é que o juiz (ou ministro ou conselheiro de Tribunal de Contas) tem 70 anos de idade? De um aniversário a outro, o que ocorre no intervalo de um ano. Ano civil, como definido na Lei 810/49. Pelo que, enquanto tiver 70 anos, o juiz (ou o ministro ou conselheiro) está apto a permanecer no cargo para o qual foi nomeado e tomou posse.

Com isso, restaura-se a ordem de valores positivados na Constituição. Valoriza-se o trabalho, rendem-se obséquios à dignidade da pessoa humana. Prestigia-se a liberdade de qualquer trabalho, ofício ou profissão, que é a regra geral, nunca a exceção. Insisto em que o quê é interditado a tais agentes estatais é o exercício do cargo de conselheiro para além dos 70 anos, o que somente ocorreria ao aniversariar novamente. Repetindo: o que é vedado não é chegar aos 70 anos e sim ir adiante deles.

Neste ponto, convém perguntar se a interpretação tradicionalíssima, que exclui do serviço ativo quem alcançou os 70 anos, não seria fruto também do mau vezo, contra o qual adverte o autorizado magistério doutrinário de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, de interpretar a Constituição conforme às leis e não o contrário? Na doutrina dos autores portugueses: “O cânone interpretativo fundamental é o de que as leis devem ser interpretadas de acordo com as superiores normas da Constituição, e não o inverso” (Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, página 53, sem o negrito e o itálico). Estaria aí a origem de todo o mal? Portanto, pouco importa o que digam em contrário (se é que dizem) os escalões normativos inferiores, porque não são eles intérpretes autênticos da obra constituinte. Falta-lhes hierarquia para tanto.

Leia-se: “No terreno da interpretação constitucional está vedada a interpretação autêntica pelo legislador ordinário. O legislador não pode arrogar-se o direito de fixar o sentido das normas constitucionais, pois ele não está em relação à constituição na mesma posição que tem em relação às leis que dele emanam” (idem).

Neste trânsito para a busca de uma interpretação mais consentânea com o sistema de valores impregnados na Constituição como tatuagem, não vou ao delírio, ao despautério, à extravagância de dizer que a aposentadoria é, em si mesma, indigna.

O que afirmo sem arrogância, mas com a altivez de uma convicção, nada importando se solitária, é que têm esses agentes o direito público subjetivo de exercer o seu ofício enquanto tiverem 70 anos, de celebrar a graça de exercerem seu ofício até a undécimo hora, obedientes à lição de Confúcio no sentido de que, escolhida uma atividade do seu agrado, o homem não teria de trabalhar um dia sequer. Somente.

Aí está o que considero ser o direito líquido e certo deles, ameaçado de lesão iminente, pois nada os autoriza a supor razoavelmente que se deixe de cumprir o que ainda hoje se vem invariavelmente cumprindo. É, aliás, o quanto basta para legitimar o uso do remédio expedito do Mandado de Segurança preventivo (artigo 5º, XXXV e LXIX, constitucional), desde que reconhecidas cumulativamente satisfeitas a plausibilidade jurídica da tese (fumus boni iuris) e o periculum in mora, que acredito sinceramente presentes. Senão, veja-se: está no artigo 7º, II, da Lei 1.533/51, a previsão da concessão de liminar quando sejam relevantes os fundamentos da impetração e do ato impugnado puder resultar ineficácia da ordem judicial, se concedida a final.

Na doutrina, tanto quanto na jurisprudência, firmou-se o entendimento da provisoriedade e da natureza cautelar da medida, que não antecipa nenhum juízo final de mérito, nada decide, nada resolve em definitivo, mas apenas resguarda possível direito do impetrante, preservando-o de lesão iminente, irreparável ou de difícil ou incerta reparação (por todos os clássicos Mandado de Segurança de Hely Lopes Meirelles, p.76, 25º edição, Malheiros, atualizada por Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes).

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é assim (RTJ 91/67; RTJ 112/140; RTJ 136/589; MS 21.206 (Ag.Reg.) DF, dentre outros). Recentemente: “Com efeito, ambas as turmas do Supremo Tribunal Federal já firmaram entendimento no sentido de que o ato decisório — que apenas verifica a ocorrência do“periculum in mora” e a relevância jurídica da pretensão deduzida pelo autor — não traduz manifestação jurisdicional conclusiva em torno da procedência, ou não, dos fundamentos jurídicos alegados pela parte interessada”(Ag.Instr. 598.883-9, com citação de precedentes, Rel. o ministro Celso de Mello, no DJU de 28 de agosto de 2006, Seção 1, p.50).

Essa relevância dos fundamentos da impetração, para efeito de concessão de liminar, é aferida em juízo de mera delibação, dispensando-se para mais adiante uma apreciação de maior rigor da tese jurídica deduzida na inicial. (Suspensão de Liminar 112-4, Relator ministro Presidente, Ellen Gracie, no DJU da mesma data, p. 25; e MC em Recl. 4528-5, Rel. o ministro Joaquim Barbosa, no DJU, idem, p. 39). Cuida-se de plausibilidade, qualidade do que é plausível, aceitável, razoável, que pode passar por verdadeiro (Koogan/Houaiss, Enciclopédia e Dicionário, edições Delta, 1994).

O (talvez) ineditismo da abordagem agora deduzida não deve servir de obstáculo instransponível a eventuais pretensões nessa direção. Nem sempre a razão encontra endereço certo nas maiorias ou unanimidades. A História é pródiga de exemplos: Arquimedes, Confúcio, Aristóteles, Sócrates, Platão, Rosseau, Voltaire, Montesquieu, Buda, Krisna, Galileu Galilei, Isaac Newton, Nicolau Copérnico, Lavoisier, Albert Einsten, Von Braun, Mahatma Gandhi e, por todos, Jesus de Nazaré, o Cristo. Para prevenir mal entendidos e contumélias irremissíveis, não me comparo a nenhum deles. Sirvo-me unicamente de exemplos de matemáticos, filósofos, cientistas e místicos que desafiaram verdades à sua época tidas como evidentes em si mesmas.

Ademais, já houve um instante em que se escreveu que a luta de um indivíduo pelo que considera ser o seu direito não é um anátema, expressão de heretismo, merecedor de escárnio, nem o torna um Lázaro, mas sim “poesia do caráter” (Rudolf Von Ihering). Já se disse que só não muda de opinião que não a tem. Com maior proficiência, Heráclito, o grego, afirmava que tudo no universo é impermanente, que não se atravessa o mesmo rio duas vezes. Tudo muda, tudo se transforma.

Musicalmente, o cancioneiro popular a todos encanta com o seu “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia, pois tudo passa, tudo sempre passará”. Ou: “Prefiro ser uma metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Fiado neles, compareço aqui para propor uma nova leitura da aposentadoria compulsória fundada nos 70 anos de idade. E acredito fazê-lo de maneira séria, responsável e refletida, sem desconhecer, no entanto, os riscos a que conscienciosamente me exponho.

A despeito disso, sinto-me confortado na doutrina de Josef Kohler: “a interpretação da lei de maneira nenhuma pode ficar sempre a mesma. É de todo o ponto inadmissível falar de uma interpretação única e só ela exata, que tenha de acompanhar a lei desde o começo dos seus dias até ao seu último momento” (excerto extraído do Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, de Manuel A. Domingues de Andrade, Terceira edição, Armênio Amado-Editor, Sucessor Coimbra, 1978, p. 18).

E ainda quando essa nova leitura não pareça convincente, ainda quando reste uma dúvida sequer, que se resolva a favor da liberdade como direito fundamental tudo na esteira da doutrina do pranteado Carlos Maximiliano: “se a limitação não é certa, se oferecem margem a dúvidas por falta de clareza ou por impropriedade da linguagem, interpreta-se contra a restrição, a favor da liberdade” (Ob. cit., p.231). Na verdade, o só fato de tratar-se de tema de estatura constitucional já seria relevante para efeito de concessão da liminar.

*Sérgio Monte Alegre: é professor de Direito Administrativo e procurador do Ministério Público Especial.

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Fonte: Revista Consultor Jurídico, 28/01/2007. Disponível Aqui

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