Trilogia dos loucos amores – Parte 3: A Filosofia do Amor em “A Mulher do Lado”

Trilogia dos loucos amores – Parte 3: A Filosofia do Amor em “A Mulher do Lado”

E, então, Zeus cria o “Amor”, a única maneira de reencontrar uma parte que outrora foi você mesmo. Gosto de pensar que reencarnamos sempre com a outra metade, sentimos, desejamos a presença do outro, mesmo na ausência. Quando bate a estranha sensação da outra vida, do Déjà Vu, o olhar fala por si. É a mais perfeita sintonia… até que a morte separe, novamente, as metades.

 

Aqui finalizo essa louca caminhada que teve seus primeiros passos nas “Perdas e Danos” dos amantes Stephen e Anna, mergulhou na tormenta das “Ondas do Destino” de Jan e Bess e, misteriosamente, terminou no incontrolável “A Mulher do Lado” (1981, La Femme d’à Côté) de François Truffaut.

Mas, antes de falar sobre Bernard e Mathilde, protagonistas de uma tragédia, apresento um pequeno fragmento de “O Banquete”: um diálogo platônico escrito por volta de 380 a.C. que tratava, basicamente, de uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor (Eros). Creio que, talvez, a filosofia nos ajude a entender os extremos, próprios dos amantes.

E assim, tudo começa… na história que pensa o amor, seja ele qual for.

O Banquete

Agatão – poeta trágico ateniense – oferece uma enorme quantidade de néctar, um vinho forte, aos convidados. Sua ideia era fazer com que as ideias fluíssem com mais efeito e intensidade.

Começa o debate. Sócrates, o mais importante entre os homens presentes, é o último a falar.

Aristófanes, comediante que ridicularizava o grande mestre, começa seu discurso afirmando que o “Amor” faz parte da natureza humana. Para ele os homens são diferentes em muitos aspectos, mas um ponto todos tem em comum: eles amam, o amor faz parte da essência de todos nós. Para entender a natureza humana é necessário desvendar a origem de alguma coisa. O Mito explica como tudo começa, como chegamos ao “Amor”.

Segundo Aristófanes, havia inicialmente três gêneros de seres humanos, que eram duplos de si mesmos: havia o gênero masculino/masculino, o feminino/feminino e o masculino/feminino, o qual era chamado de andrógino: “É, então, de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana”.

Estas criaturas viviam em guerra com os Deuses, planejando até uma espécie de luta armada contra eles. Para os Poderosos do Olimpo, a explicação para tanta audácia consistia no fato de que quando já temos a nossa metade, não precisamos de mais ninguém, nos sentimos suficientemente fortes para enfrentar qualquer coisa, até mesmo um Deus.

Diante disto, Zeus decide acabar com a arrogância das ousadas criaturas cortando-as ao meio, de modo que cada metade fosse jogada em encarnações diferentes. Enquanto as metades não se encontrassem, ficaria apenas o vazio, a sensação de estar incompleto, de faltar alguma coisa, de insatisfação total.

Zeus então cria o “Amor”, a única maneira de reencontrar uma parte que outrora foi você mesmo. Gosto de pensar que reencarnamos sempre com a outra metade, sentimos, desejamos a presença do outro, mesmo na ausência. Quando bate a estranha sensação da outra vida, do Déjà Vu, o olhar fala por si. É a mais perfeita sintonia… até que a morte separe, novamente, as metades.

Ainda explicando o Mito: de nada vale a procura por outra pessoa, pois amamos uma só vez, pela união de duas metades, a eterna procura do Amor. É a felicidade ou a constante aflição.

Para Sócrates, o amor faz parte da natureza humana, conhecer o homem e o papel dele na terra. Toda ideia de evolução passa pelo amor, toda forma de filosofia passa pelo amor ao saber.

No entanto, diz o Mestre, o amor tem a ver com uma carência, com a falta, as pessoas amam aquilo que não têm: tudo e qualquer coisa que podem perder. A insistente procura tem a ver com desejo, portanto a falta, ao vazio decorrente dela.

Então, o filósofo chega ao paradoxo, a duas informações que vivem em conflito; o amor e o desejo.

Ainda sobre o conceito de amor, Platão diz: “o que se ama é somente aquilo que não se tem. E se alguém ama a si mesmo, ama o que não é. O objeto do amor sempre está ausente, mas sempre é solicitado. A verdade é algo que está sempre além: sempre que pensamos tê-la atingido, ela nos escapa entre os dedos. Essa inquietação na origem de uma procura, visando uma paixão ou um saber, faz do amor um filósofo. Sendo o “Amor”, amor daquilo que falta, forçosamente não é belo nem bom, visto que necessariamente o “Amor” é amor do belo e do bom. Não temos como desejar aquilo que temos”.

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No mesmo diálogo, Platão ainda fala sobre a origem de Eros (através do mito narrado por Diotima de Mantineia a Sócrates). Eros teria a natureza da falta, justamente por ser filho de “Recurso” e “Pobreza”.

Paradoxo de Sócrates

Como penso que o que não tenho será a garantia da felicidade?

Como posso esperar tanto de alguma coisa que eu não tenho? É ilógico!!!

O objeto da felicidade é o que não temos.

Como o mestre não desvenda o paradoxo, a Sacerdotisa Diotima lhe concede a chave para solucionar o conflito.

Diotima

Ocorreu uma festa entre os Deuses do Olimpo, na ocasião do nascimento de Afrodite. É sempre bom lembrar que os mortais, os não convidados, foram excluídos da festança.

Finalizado o encontro, um dos Deuses, “Recurso”, filho de “Prudência”, caiu nos jardins da casa, de tão embriagado que estava. Uma das mortais, “Pobreza”, uma mendiga que pedia esmolas na porta da casa, o viu adormecido e pensou que seria uma boa solução para a sua vida fazer um filho com aquele belo Deus, tão cheio de qualidades e recursos.

Assim “Pobreza” concebe um filho: de um lado Deus, do outro Mortal. Desse encontro nasce um Herói, com as vantajosas características de um Deus e as falhas de um Mortal. Entretanto, “Ele”, o “Amor” não tem nem a inteligência, nem os recursos de um Deus, mas sim a capacidade de sonhar, de criar o que ainda não tem. Ele herda da mãe a coragem de lutar pela sobrevivência, e do pai, o belo.

Explicando o Paradoxo

O “Amor” nasce, morre e renasce infinitas vezes, porque ele deseja sempre mais. Pela natureza do pai ele floresce, brilha, transmite energia e ressuscita. Pela natureza da mãe tudo que é alcançado, é perdido. Portanto ele luta pela sobrevivência, sem nunca perder a capacidade de sonhar.

Analogia com “A Mulher do Lado”

Ninguém melhor que François Truffaut para pensar sobre a complexidade do amar com seu caráter inevitável e, ao mesmo tempo, acidental que envolve aqueles que se entregam e chegam às raias da tragédia. Esse seria o cruel destino dos amantes Bernard e Mathilde?

Logo nos primeiros minutos, já nos vemos diante do inesperado, e quem nos conduz pela história é Madame Odile Jouve (Véronique Silver), a dona do clube de tênis da pequena cidade no interior da França. Lá vive Bernard (Gérard Depardieu) com a esposa e o filho pequeno. Uma vida tranquila e aparentemente feliz, sem maiores sobressaltos ou possíveis insatisfações, até a chegada do casal Bauchard que, ironicamente, serão os vizinhos do pacato casal.

Passadas algumas cenas, sentimos um clima, próprio dos casos mal resolvidos: Mathilde Bauchard (Fanny Ardant) e Bernard tiveram, no passado, um tumultuado relacionamento. O acidental reencontro, talvez o que chamamos de obra do destino, fará renascer toda a intensidade, do bem e do mal, destruindo a vida que cada um construiu após a separação.

O trágico desfecho, apesar de previsto, choca quando revela a incômoda relação da frase “Nem com você, nem sem você”: o amor que se realiza apenas e tão somente no seu final.

Amor e morte, partes que se entrelaçam no momento do mais completo gozo, definitivo. Para o cineasta o “indiscutível fato da relação entre os seres humanos e seus mais íntimos sentimentos”.

 

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=fOrafbNZLyY

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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