“Existe uma paisagem interna, uma geografia da alma, cujos contornos buscamos durante a nossa vida”. Essa frase do protagonista revela o que nos espera, os múltiplos olhares sobre esta incômoda história de Josephine Hart, adaptada e dirigida por Louis Malle, que viria a falecer três anos após o lançamento do filme. Mas quem seriam os amantes, Stephen Fleming e Anna Barton?
Será que para falar de amor, precisamos mesmo ter uma data tão comercial como o dia 12 de junho? E ainda ter que suportar um clima tão meloso e irreal como vemos nas expectativas supostamente apaixonadas dos enamorados? Questionando esse “mi mi mi” todo, preferi escrever sobre os amores rasgados, aqueles malditos, ardentes na essência e desesperadamente loucos nos princípios.
Para representar esse desvario de sentimentos, apresento três filmes que digo: há que ter fôlego para assisti-los. Neste texto, contarei a história de Stephen e Anna do avassalador “Perdas e Danos” (1992, Damage, Direção: Louis Malle).
No texto seguinte, virão Bess e Jan de “Ondas do Destino” (1996, Breaking the Waves, Direção: Lars Von Trier).
Finalizarei a trilogia dos loucos amores com Mathilde e Bernard de “A Mulher do Lado” (1981, La Femme D’À Côté, Direção: François Truffaut).
Filmes são uma porção terrivelmente complexa e controversa do mundo interno daqueles que os concebem e dirigem. Talvez, por isso mesmo são conteúdos que ironicamente flertam com o que desconhecemos em nós mesmos, e/ou nos esforçamos para evitá-los.
O que ignoramos dentro de nós mesmos chegará, mais cedo ou mais tarde, de fora… como um caminhão em nossa direção, na pista errada”. (2006, p.13, James Hollis, A Sombra Interior)
Perdas e Danos
“Existe uma paisagem interna, uma geografia da alma, cujos contornos buscamos durante a nossa vida”. Essa frase do protagonista revela o que nos espera, os múltiplos olhares sobre esta incômoda história de Josephine Hart, adaptada e dirigida por Louis Malle, que viria a falecer três anos após o lançamento do filme.
Mas quem seriam os amantes, Stephen Fleming e Anna Barton?
Ele, Stephen, interpretado majestosamente por Jeremy Irons, um ministro inglês casado com a linda, loura e equilibrada Ingrid (Miranda Richardson). Sobre a relação com a esposa, declara: “A sua vida e a minha tinham seguido linhas paralelas durante todos aqueles anos. Sem acidentes, sem sinais ignorados. Éramos um casal civilizado, aproximando-se tranquilamente dos anos finais e da velhice”.
Tudo normal, sem maiores sobressaltos, até a chegada de Anna (Juliette Binoche), a mulher intrigante, misteriosa, de olhar distante, profundo e sedutor.
Destino? Quem sabe uma conspiração irresistível a favor dos amantes. Se não fosse o acaso durante um coquetel, bem que Stephen poderia ter ignorado a presença de Anna, mas desde o primeiro momento em que o homem e a mulher cruzaram seus olhares (“Reconhecêramos um ao outro”), o desejo e principalmente a cobiça de ambos gritaram aos quatro cantos de seus corpos.
“Podemos passar a vida inteira felizes ou infelizes, bem sucedidos ou fracassados, amados ou não, sem jamais parar imobilizados pelo choque do reconhecimento, sem jamais sentir a agonia do momento em que o grilhão retorcido em nossa alma se desprende, e afinal encontramos o nosso lugar” – assim foi, para Stephen, encontrar o amor, alguém de sua espécie, um outro membro de sua raça.
Em Anna, dentro de Anna, Stephen se sentiria “em casa”: “Minha alma correra para Anna Barton. Acreditei que numa questão de natureza tão íntima, entre mim e Deus, poderia deixar que as coisas seguissem livremente o seu curso, sem temer causar danos ao coração ou à mente, ao corpo ou à vida”.
Engana-se quem resume em atração, a catarse que se deu entre os dois. Desde o princípio, o amor é tenso, selvagem, irracional, urgente e acima de tudo, proibido. Detalhe importante: Anna é noiva de Martyn, o filho de Stephen.
Anna, para Stephen, na sua completude, é “a experiência de uma fração de segundo que modifica tudo”.
Cego de todas as impossibilidades e consequências, Stephen leva adiante os chamados do desejo e mergulha em uma relação possessiva e impossível com uma mulher que exala mistérios e segredos nefastos, como a relação quase incestuosa que mantinha com o irmão na adolescência. Devorado pelo irrealizável, o irmão comete suicídio.
Essa é a marca de Anna que a faz fugir de toda e qualquer relação de posse. Ela apenas viveria para saciar suas vontades e buscar sua própria liberdade, mesmo que isso envolvesse manter uma relação com o pai do futuro marido. “Sou uma pessoa marcada. Pessoas marcadas são perigosas. Sabem que podem sobreviver”, ela alerta.
Num jogo de entrega total, irreversível, Stephen e Anna selam seus destinos: “Fomos possuídos por aquele ritual antiquíssimo e eu a mordi, agarrei e abracei, continuamente, vezes seguidas, enquanto nossos corpos subiam e desciam, subiam e desciam, indo até as profundezas mais selvagens. Mais tarde haveria tempo para a dor e o prazer que a luxúria empresta ao amor”.
Devastado pelo desejo de possuir todos os cantos e recantos de Anna, de “respirar” Anna, de “beber” Anna, Stephen, sem limites, se vê consumido pela culpa, é como se ele já soubesse do inevitável que estava por vir.
“É nesse erro essencial que muitas vidas tropeçam. Na ideia absolutamente equivocada de que temos o controle. De que podemos escolher ir ou ficar, sem sofrer nenhuma agonia. Afinal, eu só tinha perdido minha alma em segredo, no meu íntimo […]”.
Ele sabia que histórias de êxtase são intermináveis histórias de fracasso. Pois sempre chega a hora da separação. E a jornada em busca daquela união essencial, recomeça. Com Martyn era diferente. Ele não tinha nenhum tipo de temor, ele aceitava que uma parte de Anna permanecesse sempre desconhecida. Ele podia lidar com sumiços, separações e silêncios de uma maneira que Stephen não era capaz.
“Eu e Anna éramos feitos para outras coisas, para necessidades que tinham que ser atendidas dia ou noite – irresistíveis desejos repentinos – uma estranha linguagem do corpo”.
E os tórridos encontros seguiram seu curso, o caminho conhecido dos amantes que se faz sempre o mesmo, cumpre o ritual, mantendo tudo inexplicavelmente da mesma maneira. Um bilhete de Anna conforta Stephen, dando-lhe a segurança de que ela sempre será sua:
“Este quarto não acomodará nada a não ser nós dois. Um mundo dentro de um outro mundo. Virei aqui para conhecer seus desejos. Pois aqui, neste mundo de minha criação, você é soberano e sou sua escrava. Esperarei nos horários que você determinar, obediente aos seus desejos, estarei sempre aqui”.
Bem que a história poderia terminar aqui, no contar dos inúmeros encontros ardentes dos amantes, mas não. O destino, de fato, conspirou contra eles e o insuportável aconteceu da pior forma possível. Nada poderia ser mais devastador do que a perda de quem saiu de você: uma lança que fere inocentes e pecadores.
Agora, Stephen carrega a culpa de tanto ter amado. Como bem disse Ingrid: “você deveria ter se matado. Eu poderia ter enterrado você e continuado a viver e continuado a amar. O sofrimento teria sido suportável. ‘Este’ é insuportável”.
Se Stephen pudesse, se ele soubesse… “Ferimentos internos são levados para o túmulo e nenhuma autópsia será capaz de revelar. Lentamente, a dor se cansa e adormece, mas nunca morre. Com o passar do tempo, vai se habituando à sua prisão, e um relacionamento de respeito se estabelece entre prisioneiro e carcereiro”.
Agora, o pai, o homem, teria que viver com um ferimento mortal: “A dor da perda de Martyn só era igualada pela dor do desejo que sentia por ela. O nome que minha voz chamava era Anna, Anna, Anna. Mas as lágrimas que derramei foram por ele, meu filho”.
Absolvição por tanto amor? Talvez pela admissão e confissão da culpa. A culpa é o único castigo e isso, um amante sempre sabe.
O que restou de Anna? Apenas um bilhete de despedida endereçado a Stephen:
“Devo retirar-me de você. Fui uma dádiva fatal. A dádiva de dor e sofrimento que você sempre buscava tão avidamente, a maior recompensa do prazer. Embora presos num minuto selvagem, quem quer e o que quer que realmente sejamos ou devêssemos ser libertou-se. Como seres alienígenas na Terra, encontramos a cada passo a linguagem de nosso planeta perdido. Você precisava de dor. E era pela minha dor que ansiava, faminto. No entanto, embora você não acredite, sua fome está completamente saciada. Lembre-se de que agora possui sua própria dor. Será ‘tudo, sempre’. Ainda que me encontrasse, eu não estaria lá. Não procure por algo que já possui. As horas e dias que nos foram concedidos, e que agora para sempre se acabaram, são também, ‘Tudo. Sempre’”.
Para aqueles que tenham ainda alguma dúvida, eu afirmo: sim, esta é uma história de amor.
Quando se ama verdadeiramente, se tem “Tudo, Sempre”, não apenas um dia, mas todos, mesmo na ausência, mesmo na distância.