A terminologia mais citada atualmente para o ato de acumulação disfuncional (exagero apego a bens ou animais) é o “Transtorno de Acumulação” que não é uma doença. Como transtorno, o caráter patológico é reconhecido.
Por Maricelma Rita Meleiro (*)
Nos últimos anos, a observação a respeito dos riscos ambientais decorrentes de situação de moradia insalubre, em ruína, com acúmulo de objetos e/ou animais, prejuízos na organização e higienização ambiental, por pessoas com ou sem aparente comprometimento mental, com associação ou não de deficiência física, dependência emocional, doenças crônicas e dependência de cuidados, vem trazendo perplexidade aos técnicos integrantes da rede de proteção das pessoas idosas, notadamente pelos contornos de degradação humana envolvidos em oposição à busca comum pela dignidade.
A literatura de saúde especializada e recentes ações em alguns Municípios vêm identificando a dimensão do problema, que coloca em risco a saúde individual e coletiva ao mesmo tempo, na maioria dos casos.
Embora as situações de acúmulo de inservíveis e animais vêm sendo observadas, em grande parte, junto a pessoas com mais de 60 anos, antes mesmo dessa idade podem ser identificados traços em algumas pessoas, os quais, crescentemente, ao longo da vida, aceleram a disposição de atribuição de valor irreal ou apego afetivo a objetos ou animais, com prejuízo de funcionalidade e recusa peremptória ao desfazimento.
Não se trata de comportamento exclusivo ou afeto à faixa etária mais elevada, a despeito da identificação ser normalmente tardia. Se pode dizer que a visibilidade é reflexo do olhar mais atento do estruturado sistema de proteção de direitos da pessoa idosa.
Identificada a situação, a dificuldade de abordagem e manejo terapêutico pelos gestores atraem a intervenção do Ministério Público na área da pessoa idosa e induzem reflexão sobre a atuação voltada à proteção integral, com preservação dos direitos de liberdade e dignidade.
É o proposto aqui em breves e iniciais linhas, sob o olhar da prática de atuação em Promotoria de Justiça.
O que é o “transtorno de acumulação”?
Na década de 1970, a acumulação prejudicial foi inicialmente designada por “Síndrome de Diógenes”, em alusão ao filósofo grego Diógenes de Sinope, em razão do estilo de vida estoico e autossuficiente, com desprendimento às necessidades materiais e convenções sociais propostas aos seguidores. A rejeição da migração dessa designação às pessoas que nos dias de hoje se despojam de uma vida funcionalmente aceitável, decorreu do argumento que os estoicos tinham consciência da proposta filosófica e a ela aderiam, optando por um estilo de vida enquanto na acumulação nociva não há preservação da crítica, memória e discernimento a respeito da realidade.
“Síndrome de Noé” foi outra vertente específica do transtorno. É a guarda de animais, domésticos ou sinantrópicos (animal hoarding), diferenciada da acumulação de inservíveis em geral (compulsive hoardes), por alguns estudiosos. Os sinantrópicos podem ser roedores, pombos, insetos em geral, são transmissíveis de doenças e por isso diferem da aceitação social de aproximação com os seres humanos.
Na área da saúde há ainda a designação do ato de acumulação disfuncional em sentido geral como “Colecionismo Patológico”. A terminologia mais citada atualmente é o “Transtorno de Acumulação”, termo abrangente de comportamentos, riscos, identificação e encaminhamentos genericamente considerados em torno do comportamento de acumular.
Patologia X Estilo de Vida
O agente causador da acumulação prejudicial não é conhecido, por isso a acumulação prejudicial é considerada um transtorno e não uma doença. Como transtorno, o caráter patológico é reconhecido.
Na versão de 18.05.2013, do “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5”, da Associação Psiquiátrica Americana (APA), o Transtorno de Acumulação foi inserido no subgrupo do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), sob a classificação 300.3, permitindo diagnóstico e tratamento adequados, como patologia isolada, secundária ou com quadros associados. Na patologia isolada (ou acumulação patológica primária), não há outro quadro sintomático de transtorno mental associado. A secundária decorre de certas causas orgânicas (acumulação patológica secundária) como demência, derrame, alcoolismo, depressão grave, esquizofrenia ou, por fim, a patologia pode se associar a quadros de transtorno de ansiedade generalizada, TOC, fobia social, abuso de substâncias químicas ou transtornos de personalidade.
Quando a acumulação pode ser considerada uma patologia?
A análise sobre a inserção sócio econômica do indivíduo é fundamental para a compreensão sobre as condições de vida da pessoa, ou seja, o suporte material existente e necessário à sua subsistência, como a nutrição, habitação, saneamento básico e ambientais sociais vivenciado por ele. As condições de vida diferem do estilo de vida adotado. O estilo de vida é o enfoque social e cultural expressado pela pessoa no padrão alimentar, na dispensação energética cotidiana e em hábitos (fumo, uso de substâncias químicas) ou lazer, dentre outros.
O estilo de vida é uma opção, portanto, voluntária ao modo, e não deve ser confundido com o transtorno de acumulação. O exagero apego a bens ou animais não sinaliza, por si, a necessidade de atenção.
Análise diagnóstica
O olhar investigativo não é apenas do médico. Os indicadores de natureza comportamental, psíquica, social, física e ambiental, associados entre si, irão permitir uma conclusão diagnóstica integral. Certos aspectos servirão para análise:
- Comportamento ao longo da vida, a partir da adolescência, sugestivo de tendência à acumulação crescente de itens ganhos, adquiridos, recolhidos ou furtados, com consequente aumento de volume, ou em relação a semoventes;
- Irrelevância do valor econômico ou de qualidade dos objetos acumulados, havendo crenças distorcidas sobre tais aspectos;
- Condições inadequadas de criação, alimentação e cuidados dos animais mantidos no espaço, gerando agressividade entre os animais, ocorrência de mordeduras, doenças tópicas, e a presença de urina e fezes, sem a correspondente higiene ambiental;
- Desproporcionalidade espacial com a guarda e/ou conservação de grande quantidade de itens ou de animais;
- Prejuízo do uso do imóvel, para o fim principal a que se destina e, quando residência, perda finalística das divisões, havendo confusão de uso dentre quarto, cozinha, banheiro, etc, com comprometimento da circulação interna e interferência no funcionamento doméstico;
- Comprometimento de qualidade de vida e de saúde dos moradores, com atração e proliferação de animais sinantrópicos no imóvel;
- Dificuldade de higienização adequada do ambiente e condições sanitárias insalubres pela redução de ventilação e iluminação com a acumulação;
- Declínio das atividades diárias, comprometimento do autocuidado (alimentação, saúde e higiene), isolamento, perda dos vínculos familiares e resistência de estabelecer vínculos sociais;
- Indiferença em relação às condições clínicas não tratadas (especialmente doenças de pele) ou sequelas de negligência, com baixa percepção do quanto a situação é prejudicial à própria saúde;
- Intensa dificuldade emocional de se desvincular dos objetos e dos animais;
- Estado de aflição e sensação de perigo permanente;
- Ações baseadas em discurso capitalista, com alienação e inserção em um processo de compra compulsiva de itens desprovidos de necessidade ou sem fruição.
O risco e a intervenção
Alguns passos, com o manejo interdisciplinar da rede de proteção local, com objetivo de melhorar a situação sem a remoção do indivíduo do local de moradia, como a avaliação dos riscos, avaliação da capacidade civil, a investigação dos vínculos familiares e sociais são as abordagens mais eficientes em prol da preservação da identidade, da dignidade e do bem-estar. Como medida de exceção sempre, a institucionalização poderá ser um meio único de intervenção para a cessação do risco.
A complexidade de etapas, olhares e fluxos é condição para o fechamento do diagnóstico intersetorial. Somente as conclusões técnicas integradas sobre a presença de risco permitirão interferências eficientes. A aproximação de um ou alguns técnicos para ganho de confiança terá permissões paulatinas às intervenções cabíveis. Ações pontuais e paliativas de um ou alguns órgãos, normalmente com fundamento sanitário, não só não resolverão o problema como poderão agravar a situação. Ações como a limpeza compulsória do imóvel, com a retirada de objetos e animais, podem causar intensa angústia e sofrimento psíquicos atrelados à grande dificuldade de desvinculação dos objetos ou animais. A estratégia de redução de danos é a mais indicada, quando voltadas à redução dos objetos/bens acumulados e a melhor organização do ambiente. A escuta, estimulação à expressão da vontade e orientação às escolhas possíveis devem ser vetores em todas as ações.
A abordagem comportamental e cognitiva permitirá também adoção de medidas de prevenção e proteção de saúde pública e, ao mesmo tempo, visará ao bem-estar físico, mental e social da pessoa.
Um diagnóstico abrangente contará com a identificação e participação da família e do entorno social (vizinhos e conhecidos com certa vinculação de confiança ou afetiva), além de permitir a constatação de eventual situação de negligência pela família, violência financeira, etc. A abordagem psicossocial (indivíduo/familiares) terá finalidade de trazer ao reconhecimento, os riscos à saúde pelo comportamento de acumulação.
O grande desafio é a atuação concentrada e integrada dos vários órgãos na territorialidade, alguns, como os da área de saúde e da assistência social, com histórica resistência no alinhamento.
A partir da integração de vários saberes frente ao caso, e havendo constatação de situação autorizadora de intervenção estatal, será possível a construção de um projeto terapêutico singular, com ideal de gestão compartilhada entre os órgãos envolvidos. Os resultados infelizmente não são imediatos, desafiando a urgência muitas vezes esperada por vizinhos e familiares.
O caminho possível
A construção de processos de trabalho articulados só tem sentido local. As características do sistema de garantias existentes no Município é fator que deverá ser considerado para compor a integração necessária. A identificação de um caso concreto bastará para ocupar o status de paradigma. Do particular para o geral, a construção de fluxos intersetoriais permitirá a ampliação dos encaminhamentos coordenados para servir de base às demais situações de risco individual.
É em tema como o proposto que os saberes produzidos pelas esferas de micro poderes estatais se mostram capazes de criar círculos ampliados e resolutivos, se diluídos num conjunto harmônico e multifacetário. Resta colocar em prática.
Bibliografia sugerida
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(*)Maricelma Rita Meleiro é Promotora de Justiça com atribuição na área da pessoa idosa e pessoa com deficiência no Estado de São Paulo e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Email: [email protected]