Trabalhadoras do cuidado relataram desafios na luta por direitos na abertura do “Colóquio Internacional Cuidado, Direitos e Desigualdades”.
Diego Facundini & José Adryan Galindo (*)
No dia 14 de abril três trabalhadoras do cuidado vieram à USP para falar de suas experiências com o trabalho e a militância pelos direitos das cuidadoras e trabalhadoras domésticas. A colombiana Yenny Hurtado e as brasileiras Ana Gilda Soares e Cleide Pinto foram as convidadas para a sessão especial que abriu o Colóquio Internacional Cuidado, Direitos e Desigualdades. O evento, sediado na Casa de Cultura Japonesa no Campus Butantã da USP entre os dias 14 e 16 de abril, marcou a conclusão do projeto de pesquisa Who Cares? Rebuilding care in a post-pandemic World, uma colaboração internacional para o estudo do tema do direito ao cuidado e o impacto da pandemia nessas formas de trabalho.
“Todos os espaços que podemos estar como trabalhadoras domésticas e como lideranças são muito importantes, principalmente nessa dimensão internacional que abrange não só o Brasil, mas todo o mundo”, afirmou para o Jornal da USP Cleide Pinto, que é presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Nova Iguaçu (RJ) e secretária-geral da Confederação Latino-Americana e Caribenha de Trabalhadoras Domésticas (Conlactraho). “Como eu falei, nada para nós sem nós. A gente sabe o que necessitamos e o que é bom para a nossa categoria, então esse espaço é fundamental para a nossa luta na equiparação de direitos”, completa.
As convidadas discutiram a luta por direitos das trabalhadoras de cuidado no pós-pandemia, a precarização da categoria após a instituição da reforma trabalhista e os debates para a elaboração da Política Nacional de Cuidados, aprovada no ano passado pelo governo Lula.
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Para a socióloga Nadya Araújo Guimarães, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora geral do Who Cares?, trazer essas lideranças para compartilhar suas vivências é uma experiência única para a Universidade. “Daquelas três que estavam na mesa, duas (Cleide e Ana) são parte do nosso conselho consultivo, ou seja, estão conosco desde o primeiro momento, discutindo o projeto, tomando decisões, trabalhando em campo. O bacana é que elas, junto conosco, estejam aqui na Universidade falando para uma audiência que está aqui e que está fora daqui”, afirma.
Trabalhadoras com cor, CEP e CPF
A abertura do colóquio foi feita pela vice-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda, que, além de dar as boas vindas aos convidados e os agradecimentos em nome da Universidade, destacou o caráter inovador do evento. Em seguida, Nadya comentou sobre a criação do projeto Who Cares?, que surgiu de um edital da Plataforma Trans-Atlântica, uma parceria entre 16 instituições para o fomento de pesquisas no campo das ciências humanas e sociais. O Who Cares? articulou uma rede de especialistas de seis países – Brasil, Canadá, Colômbia, Estados Unidos, França e Reino Unido – que já colaboravam ou convergiam nesse tema de pesquisa sobre cuidado. O encontro na USP foi o terceiro colóquio internacional da rede.
Também falou na abertura do evento a secretária nacional da Política de Cuidados e Família, Laís Abramo. Ela coordenou a elaboração da Política Nacional de Cuidados (Lei nº 15.069/2024). A lei foi sancionada no ano passado com o objetivo de garantir o direito ao cuidado, integrando políticas públicas em áreas como saúde, assistência social e previdência e combatendo a precarização no setor.
Segundo Laís, o projeto, elaborado após um diálogo entre 20 ministérios e aprovado em um prazo relativamente curto pelo Congresso Nacional, serviu para sanar tanto as lacunas nas políticas públicas já existentes quanto o atraso das políticas brasileiras para o cuidado, que sofreram um retrocesso durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Ao início da sessão especial, antes das introduções, Cleide Pinto pediu uma homenagem a Luiza Batista, militante dos direitos das trabalhadoras domésticas que faleceu em março deste ano. O auditório inteiro se levantou e fez um minuto de silêncio. A pesquisadora e co-diretora do Centro de Gênero e Desastres da University College London, Louisa Acciari, mediou o debate e apresentou cada uma das convidadas.
A primeira a falar na sessão especial foi Yenny Hurtado, trabalhadora doméstica e educadora popular, que relatou a situação das trabalhadoras da Colômbia. Segundo ela, o estado das coisas está ainda pior que durante a pandemia. Ela contou que o período de distanciamento social serviu para que as patroas passassem a exercer mais responsabilidades dentro dos domicílios, diminuindo muito a demanda pelas trabalhadoras domésticas. Além disso, a crise também ocasionou a perda dos benefícios conquistados pela ratificação da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pela Colômbia – um mecanismo que ratifica o comprometimento da nação com uma série de princípios e diretrizes que, nesse caso, representam o apoio a diversas medidas de proteção às trabalhadoras domésticas, por via da legislação e de políticas públicas.
Yenny denunciou também os salários baixos das trabalhadoras domésticas e a negligência do Estado em pôr em prática leis que protejam os direitos dessas cuidadoras. Como presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Serviços Domésticos (Sintraedom) da Colômbia, Yenny afirmou que muitas vezes a associação precisa “assumir parte do que o Estado deveria assumir, porque não há quem proteja essas mulheres”. Por fim, relatou que a situação é ainda mais delicada para as trabalhadoras migrantes, sobre as quais disse não haver nenhum estudo.
A segunda debatedora da mesa foi Ana Gilda Soares, sócia-fundadora da Associação dos Cuidadores da Pessoa Idosa, da Saúde Mental e Com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (Acierj). Assistente social de formação, Ana começou pontuando que, de acordo com a Constituição de 1988 e com a Lei Orgânica da Assistência Social de 1993, as trabalhadoras do cuidado estão inseridas no Sistema Único de Saúde (SUS) e no Sistema Único de Assistência Social (Suas). Um dos exemplos de trabalhadoras do cuidado citado pela assistente social são as trabalhadoras dos Serviços Residenciais Terapêuticos, que substituíram os manicômios pelo Brasil.
“A gente precisa lembrar que essas trabalhadoras têm cor, CEP e CPF. São mulheres negras da periferia, elas que movem esses trabalhos”, afirmou Ana.
Ana destacou a precarização do trabalho das cuidadoras no serviço público, mencionando a falta de capacitações dadas pelo governo, a regulamentação ainda atrasada da profissão e o descaso com elas durante a pandemia, o que obrigou as profissionais trabalharem ainda mais, muitas vezes doentes e com equipes reduzidas. A pandemia também serviu para desmobilizar a luta que se concentrava na campanha “vira veto”, que pressionava o Congresso a derrubar o veto do então presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei que regulamentaria a profissão de cuidadora no Brasil.
Finalizando a mesa, Cleide Pinto falou sobre os desafios enfrentados pela classe cuidadora e as expectativas para o futuro da luta. Cleide comentou que apesar do retrocesso no governo Bolsonaro, a classe continuou se mobilizando e se reuniu com o presidente Lula ainda na época de sua candidatura para um evento que contou com a presença de mais de 300 domésticas. A categoria apresentou à equipe do presidente o plano de luta e uma cartilha com as reivindicações dos profissionais do cuidado. Essa abertura culminou na criação da Política Nacional de Cuidados.
Cleide revelou que tem acompanhado casos nos quais patrões de domésticas usaram os dados das trabalhadoras para abrir o regime de Microempreendedor Individual (MEI) sem o conhecimento delas, se prevenindo de pagar a contribuição à previdência social das profissionais. Quando são demitidas, essas trabalhadoras não têm acesso aos seus direitos trabalhistas. Apesar da reversão ser possível pela via judicial, processar os patrões é difícil porque muitas vezes demanda recursos que as domésticas não possuem. “É muito difícil provar o que acontece dentro de uma residência”, acrescentou Cleide.
Acompanhe as falas na íntegra
(*) Diego Facundini & José Adryan Galindo, estagiários sob supervisão de Silvana Salles
Fonte:Jornal da USP
Foto destaque: Da esquerda para a direita: Yenny Hurtado, Louisa Acciari, Cleide Pinto e Ana Gilda Soares – Foto: Lorenzo Pôrto/CCI/Cebrap
