Áurea Lima importa-se bem menos do que os outros se o lado direito do corpo está paralisado ou se carrega 68 anos de idade. Porque ao contrário do que muitos poderiam prever há três anos, quando sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), ela renasceu.
Juliana Diógenes / Fotos: Alessandra Anselmi e Carlos Mancini (Chopin, 2003 – acrílica sobre tela)
Para acessar a casa-ateliê da artista plástica, numa ruela de paralelepípedos da Vila Mariana absolutamente embebida pelo silêncio solene da vizinhança, é preciso subir. Cerca de quinze degraus de cimento separam a porta de entrada, na rua da Mantiqueira, do reduto da artista plástica logo acima; e mais outros quinze amadeirados, no interior da casa, isolam a cozinha e a sala, dos quartos no piso superior.
Todos os dias, Áurea dispensa educadamente qualquer tentativa de apoio de outras pessoas no sobe-e-desce. Com agilidade, administra as subidas e descidas das escadas por conta própria. Nem perca tempo oferecendo a mão, só há espaço para ela – e, quando muito, para a extensão do corpo, a bengala.
Feito uma criança que, na tentativa e no erro, aprende a caminhar, falar, ler e firmar os talheres entre as mãos, ela se agarra aos pequenos desequilíbrios diários em compromisso às reinvenções determinadas para si. Mulher versada na arte e no desejo de reeditar-se, adotou o lema que define a busca pela perfeição do traço: “Um dia, eu chego lá”.
Enquanto o “lá” não chega, a artista plástica se vê às voltas com os arroubos de pintura que, após mais de um ano adormecidos, voltaram a invadi-la. E já não lhe largaram desde o final de 2011, quando o luto do AVC deu lugar à reconciliação com a arte, seara de onde Áurea nunca poderia, sequer conseguiria, escapar.
Áurea não se deixou intimidar pelo braço direito paralisado. Mais por instinto do que consciência, driblou a desvantagem quando deu voz à insistente e apressada angústia por pintar. Àquela altura, o desejo emergiu como a ânsia de um vômito. Já não importava a limitação. Foi assim que, não se sabe como, Áurea se deu conta da poderosa combinação entre o amor pela arte e a sua mais nova mediadora: a mão esquerda.
(dna. Áurea com a filha Cláudia Campioni)
A primeira vez a gente nunca esquece
“Foi num escorregão”, conta a filha e arquiteta Cláudia Campioni. Era Natal de 2011. “Um dia, a gente estava na garagem e ela falou: ‘Ah, filha, sabia que está começando a me dar uma vontade de pintar?’ Peguei dois cavaletes, a madeira, a cadeira de rodas e… pá! Foi um vômito essa tela. Acho que foram oito minutos”.
Da confortável poltrona na cor café, Áurea esquadrinha a filha e deixa escapar um riso envergonhado. Vestida numa blusa branca de mangas compridas, calças claras e com uma echarpe bege delicadamente caída em volta do pescoço, os lábios pintados de vermelho claro se abrem na forma de um sorriso. Parece transportar-se para a cena da primeira tela produzida após o AVC: a sombra de uma mulher, em tons vermelhos, com chifres. Como se, apenas pela pintura, pudesse libertar os monstros interiores e, enfim, aliviar-se. “Eu senti uma alegria, mas uma alegria que não dá pra…”. A voz embarga. E a emoção lhe impede que complete a frase.
“Lembro que, depois, ela falou: ‘Filha, quando disse que estava com vontade de pintar, não era aquela hora!’”, ri Cláudia. Com os olhos ainda tomados pelas lágrimas, Áurea sintetiza o momento na palavra “alucinante” e conclui: “Tinha a impressão de que alguma coisa no destino me forçou a ficar assim para eu desenvolver esse lado esquerdo. Sei lá”.
A ampla sala da casa-ateliê é o cenário onde, com o apoio da filha, a artista concede esta entrevista e se deixa fotografar pela primeira vez depois do AVC. Do piso ao teto, as telas de Áurea preenchem as paredes do espaço. Sem exceção. Encaixam-se, horizontalizadas e verticalizadas, como peças de um quebra-cabeça que ajuda a definir a própria trajetória. A maior parte das telas, em torno de 15, nasceu das habilidades com a mão esquerda.
Entre elas, uma das primeiras pintadas após o AVC . “Não tenho o traço firme, mas estou chegando lá”. A tela em preto e branco exibe bailarinas dançando com os braços erguidos. O restante do corpo não aparece. “É muito engraçado porque ela voltou a pintar sem pernas e braços. Depois, não tem pernas. Depois, começam a… Eu nunca falei isso”, dá-se conta Cláudia, de repente. Surpresa, a mãe ergue as sobrancelhas e solta baixinho, com a voz serena: “Que loucura! Não lembro…”.
Memórias pinceladas
Áurea gosta de repetir durante a entrevista que sente dificuldade em recordar o nome de determinada pessoa com quem trabalhou, uma situação ou mesmo uma palavra – como se pedisse desculpas não aos outros, mas a si mesma, por se deparar com falhas na própria colcha de retalhos da vida.
O que Áurea parece não se dar conta, entretanto, é que costura com lucidez memórias de 50 anos atrás, quando revela que as lembranças mais marcantes da infância são os desenhos rabiscados e vendidos, com apenas 10 anos, para um estilista francês; ou quando resgata, com sorriso de menina, as frequentes idas às sessões de cinema com os cinco irmãos mais velhos, ocasião em que o pai dava uma aula sobre a escola italiana à prole, apresentando os mais ilustres diretores da época. “O pessoal me deixava fazer o que eu quisesse. Talvez por isso tenha desenvolvido tanto a arte. Acho que fui uma criança acima do normal, tanto que tinha amizades mais com adultos do que com crianças.”
A percepção sobre a própria condição “acima do normal” veio aos 17 anos. “A impressão que eu tinha era que todo mundo fazia isso”, confessa ela, em referência aos desenhos criados na infância. Até então, Áurea não sonhava em ser artista, sequer projetava uma profissão, mesmo após o primeiro contato oficial com a arte, quando apresentou os quadros numa exposição e chegou, inclusive, a vendê-los. Escolheu cursar arquitetura, mas no terceiro ano trocou por Belas Artes. A ânsia por trabalhar e o talento, porém, não esperaram. Áurea não concluiu a graduação. É que naquela época, segundo explica, “você não precisava se formar em alguma coisa”. Ela já estava pronta para se lançar. E sabia disso.
Durante décadas, trabalhou em marcas de roupa como Toledo e Ellus, viajou o mundo e transformou-se numa executiva da moda. Áurea, naquela época, viveu o auge. Recebeu prêmio de figurino no cinema e, em 2008, chegou a inspirar um desfile de moda no Dragão Fashion, em Fortaleza, com a temática pela qual se tornou conhecida: bailarinas. Se por um lado decolara no lado profissional, produzindo incessantemente quadros, desenhos, roupas, esculturas e objetos, por outro deixara escapar a autonomia artística e o tempo com as duas filhas pequenas, Cláudia e Carla.
Um dia, as perdas pesaram na balança. Áurea cansou e largou a rotina de executiva. “Resolvi assumir a vida. Daí, a vida ficou mais difícil, mas ao mesmo tempo ficou esplendorosa”, desabafa, em tom de alívio, ao reviver o momento de retomada da independência artística. Dali em diante, ao decidir pelo cenário novo em detrimento do trabalho sólido nas marcas de moda, Áurea aplicou a metáfora da pintura à própria vida, descartando a tela – no caso, a rotina – que há anos descansava confortavelmente no cavalete.
A reinvenção da velhice “inevitável”
À revelia do AVC nesse meio tempo, continuou fiel ao resoluto ímpeto de alimentar novos hábitos. Assim, criou gosto por bronzear-se no terraço do quarto, mergulhar na poltrona para assistir filmes na televisão, mudar móveis e caixas de canto ou, simplesmente, perder-se no estado de transe atingido apenas quando se senta com o pincel na mão diante da tela. Somente ali, em contato direto com a arte, é capaz de ensaiar passos de bailarina, imaginar-se em meio à multidão na rua, recriar amigos e familiares, inventar shows particulares com Marisa Monte e conversar com Jô Soares. Porque pintar, para Áurea Lima, é “viajar, viajar e viajar. É motivação para eu estar bem todos os dias. Pintar é tudo”.
O desejo engavetado de dançar, feito as bailarinas que há anos rodopiam com os movimentos dos pincéis, pode ser mais um aliado à motivação diária da artista fora das telas. Questionada se a vontade antiga de dançar persiste, Áurea abrevia a primeira resposta num imediato e impensado “não”, para logo emendar, após um longo silêncio grávido de desejo: “Sim!”. A confidência verteu, mais uma vez durante a conversa, de braços dados a um dos tantos sorrisos adocicados da artista de lábios vermelhos.
Com o olhar cândido, Áurea dispensa sem sobressaltos o medo do tempo, das rugas e da morte. Prefere observar o envelhecimento no mesmo patamar da sabedoria. “Cada ano, você vai tendo novas experiências. Ficar velho é inevitável. É como a morte, a gente tem que olhar de um jeito mais humano, seja lá o que for”, ensina. Ela curte o hoje, filosofa Cláudia. E mesmo quando impelida a se imaginar daqui a cinco anos, não hesita na resposta: “Velhinha. Muito velhinha. Pintando”.
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