O rápido processo de envelhecimento populacional brasileiro que experienciamos é um alerta para a necessidade de mudanças que englobem diversos âmbitos da vida. Também é essencial que se pense na valorização da vida daquele que envelhece, mas será que a sociedade entende isso?
Catarina Stenders e Ruth Gelehrter da Costa Lopes(*)
Uns vivem por temer morrer, eu não morro por temer viver”. (Mia Couto)
A partir do relato de Leonardo Munkeviz – um homem de 76 anos que teve sua solicitação de empréstimo para a realização de cirurgia de catarata negada – faremos uma breve reflexão sobre a subjetividade de uma pessoa idosa que se sente excluída e impossibilitada de viver a vida como deseja.
Munkeviz denuncia que as grandes corporações veem a pessoa mais velha – aquele que não mais produz -como um ninguém, um sujeito que apenas espera a morte, mesmo vivo.
Relato
Nessa idade é quando a gente mais precisa de ajuda, financeira mesmo. A gente recebe uma aposentadoria, mas quando tem uma questão de saúde, às vezes não dá. Com uma pessoa jovem a realidade não é bem assim.
O que acontece é que eu estou muito indignado com as empresas, principalmente bancos, com os quais eu trabalho e, por uma questão recente, eu tomei conhecimento, pois eu tive necessidade de recorrer a bancos para um empréstimo numa emergência. Eu, como correntista de três bancos, tive a decepção de ter créditos negados para uma cirurgia de vista. A alegação dos bancos foi de que a minha idade já tinha ultrapassado o limite criado por eles.
Os três bancos têm limites de crédito para idosos e diante disso eu fiquei muito indignado, é um momento de revolta e ao mesmo tempo de preocupação com o futuro dos idosos. Como vamos daqui pra frente suportar uma necessidade financeira se estamos afastados da sociedade?
Eu gostaria que tomassem conhecimento dessa situação que deverá mudar com o tempo. A gente não tem mais como ter emergência já que não tem socorro financeiro. Eles só esperam a gente morrer e não quer que atrapalhe os ganhos do banco, que eles só conseguem com os jovens trabalhadores.
É um alerta, no meu caso o empréstimo foi negado mesmo eu tendo durante todos esses anos uma ficha limpa, sem nenhuma restrição. Os bancos reconhecem isso, o problema é só a minha idade mesmo. Não tinha me dado conta que agora eu não sirvo mais, não estou produzindo, né.
Eu tentei resolver meu problema com a antecipação do meu imposto de renda porque o imposto de renda é restituído pela receita federal, mas os bancos, através de propaganda na mídia, oferecem a restituição do valor, eu procurei o banco que eu encaminho meu imposto de renda e o banco, pra minha indignação, também fez a negativa com relação ao valor que eu tenho disponível na receita. O pretexto era novamente minha idade. Nesse caso não seria nem um empréstimo, é um dinheiro que eu tenho direito, assim que for dada a restituição, é meu já, e eu queria um adiantamento. Depois de muita briga, eles fizeram um adiantamento da minha restituição, porém parcial, eles não querem ter nenhum risco de eu morrer e eles perderem dinheiro.
No relato de Munkeviz, percebe-se uma situação complexa entre os interesses do capital e as necessidades reais dos velhos que estão sendo negligenciados e abandonados pelas políticas públicas. Camarano e Pasinato (2004) enfatizam que o processo de desenvolvimento econômico e social deve ocorrer de forma contínua. Porém não é o que vem acontecendo no Brasil, prejudicando aqueles que se encontram em situação de urgência e desamparo.
Os mesmos autores ainda enfatizam que nos países em desenvolvimento e, especificamente, no caso brasileiro, o acelerado processo de envelhecimento está ocorrendo em meio a uma conjuntura recessiva e a uma grave crise fiscal que, juntas, dificultam a expansão do sistema de proteção social para todos os grupos etários e, em particular, para os idosos.
O rápido processo de envelhecimento populacional brasileiro que experienciamos (Wong; Carvalho, 2006) é um alerta para a necessidade de mudanças que englobem diversos âmbitos da vida. Também é essencial que se pense na valorização da vida daquele que envelhece, mas será que a sociedade entende isso?
“Estamos caminhando na direção de uma sociedade para todas as idades?” (Camarano; Pasinato, 2004)
O relato de Munkeviz ocorreu exatamente para que o velho fosse ouvido em sua vivência, evitando que se cristalize aquilo que pensa para ele e sobre ele. Hoje predomina uma visão de “problema associado ao idoso”, o que leva a estereótipos que excluem os velhos de suas comunidades (Guerra; Caldas, 2008). As “queixas” observadas são um reflexo disso e também um “investimento”, quase que desencorajado, de que tal situação mude.
Para o idoso desejante, pode ser difícil o momento em que este se dê conta de sua incapacidade de realizar as tarefas cotidianas, tanto por questões do envelhecimento fisiológico como pelos obstáculos criados socialmente.
Para Guerra e Caldas (2008) os meios materiais de produção acabam por excluir esses cidadãos: “Na sociedade capitalista, o trabalho é o maior preditor da qualidade de uma pessoa. Isto pode ser evidenciado nas imagens dos idosos quando relatam a velhice como perda de capacidade laborativa e aposentadoria, por exemplo”.
Entretanto, ao mesmo tempo em que existe a imagem negativa relacionando o idoso com degeneração, doença e incapacidade, é propagada a emergência de uma nova imagem que prega autonomia e capacidade. A coexistência destas duas visões passa a ser um desafio para a implementação de políticas públicas que vise pensar o idoso como um indivíduo em toda sua plenitude.
É tarefa dos profissionais da saúde atentar para o fato de que tanto os velhos desejantes como aqueles que já não têm capacidade de produzir, não devem ser excluídos ou segregados socialmente. A sensação de “ser colocado em uma bolha” é referente a essa estigmatização da incapacidade, porém ao se considerar as diferentes velhices, observamos a subjetividade de cada indivíduo.
Por mais que os interesses capitalistas não estejam de acordo com as necessidades dessa parcela populacional, não há mais como ocultar a necessidade de uma mudança que tenha como meta o bem estar de todas as faixas etárias.
Assim como em “O último voo do Flamingo” (COUTO, 2016) – que critica a ganância dos governantes locais de Moçambique em uma vila fictícia após a guerra civil, onde o povo sofre necessitando de uma reestruturação – a força humanista predomina.
Existe uma esperança que foi “raptada” pelos poderosos. Aos “personagens principais” e aos profissionais da saúde só resta esperar um outro “voo do flamingo” para que o sol possa nascer novamente num país que tem sede de reestruturação.
Referências
CAMARANO, A.A; PASINATO, M.T. (2004). O envelhecimento populacional na agenda das políticas públicas. Disponível em: www.en.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/Arq_16_Cap_08.pdf . Acesso em: 21 nov. 2016.
COUTO, M. (2016). O Último Voo do Flamingo. São Paulo: Companhia das Letras.
GUERRA, A.C.L.C; CALDAS C.P. (2008). Dificuldades e recompensas no processo de envelhecimento: a percepção do sujeito idoso. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000600031. Acesso em: 21 nov. 2016.
WONG, L.L.R; CARVALHO, J.A. (2006). O rápido processo de envelhecimento populacional no Brasil: sérios desafios para as políticas públicas. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982006000100002. Acesso em: 21 nov. 2016.
* Catarina Stenders – Aluna do curso de graduação de Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica – PUCSP, 5º semestre. Ruth Gelehrter da Costa Lopes – Supervisora Atendimento Psicoterapêutico à Terceira Fase da Vida. É docente do Programa de Estudos Pós Graduados em Gerontologia e do Curso de Psicologia, FACHS.