O ar-condicionado esconde os 38ºC do lado de fora das persianas que tingem de vermelho o estúdio de Millôr Fernandes. A TV da ala azul está ligada no enterro do papa. Há estantes com livros e quadros em todas as paredes e, sobre a escrivaninha, alguns desenhos do pontífice metamorfoseado no Grito, de Edvard Munch, publicado em sua coluna semanal na revista Veja em abril. Como é sexta-feira à tarde, Millôr dispensou suas duas funcionárias e prepara sozinho os dez cafés que toma por dia. Enquanto pilota a máquina de expresso, mostra que também domina a arte do discurso dispersivo.
“O mundo é feito de 90% de idiotas. Idiota porque não teve educação, porque teve educação errada, porque teve educação demais.”
Começa falando de Shakespeare, salta para Lula, imita Nelson Rodrigues, satiriza Freud e Jung, comenta sobre o Viagra, elogia as garotas de Ipanema, divaga sobre o presente, volta para o passado, prevê o futuro. O guru do Méier é dono de uma rapidez mental impressionante e de uma inteligência desconcertante.
Millôr nasceu Milton Viola Fernandes, em 16 de agosto de 1923. Por um descuido de seu pai, Francisco, foi registrado só em 1924. O desleixo só não foi maior que o do escrivão, que rabiscou Millôr em vez de Milton. Quando descobriu o erro, já publicava desenhos na imprensa e resolveu adotar o neologismo.
Vanguarda
Nos seus mais de 60 anos de carreira, trabalhou como jornalista e desenhista em diversos jornais e revistas. Foi um dos fundadores do Pasquim, uma das maiores referências do jornalismo de resistência no Brasil. Mas Millôr prefere olhar para a frente, tanto que se esquivou de uma participação efetiva no projeto nostálgico da mesma turma na revistaBundas, em 1999, e no Pasquim 21, em 2002. As duas publicações — capitaneadas pelo antigo parceiro Ziraldo — foram à bancarrota, confirmando uma frase antiga de Millôr: “Quem é nostálgico não tem futuro”.
Ao todo, são mais de 50 livros de prosa, poesia e desenhos, 22 peças de teatro, sete roteiros individuais para o cinema, uma adaptação para a televisão de Memórias de um Sargento de Milícias, algumas músicas e 100 traduções de obras-primas de Shakespeare, Cervantes, Molière, Sófocles, Brecht, Fassbinder e Beckett. Aos 82 anos, segue firme em seu ofício — criar. Depois de 22 anos afastado da Veja, voltou a fazer uma coluna semanal na revista em setembro do ano passado. Em abril, a editora Argumento relançou sua revista Pif Paf — censurada pela ditadura. Para desgosto dele, que desdenha das multidões, mantém atualizado um premiadíssimo site que chega a ter 50 mil visitas por dia. “Se eu soubesse o que atrai tanta gente, nunca mais faria de novo”, brinca.
“A imprensa tem uma proposta de alta qualidade, exprimir a verdade — só que hoje o objetivo é escrever bonito para vender. Já a proposta da publicidade é: ‘Vamos enganar o outro!’.” De cima para baixo, com Ylen Kerr e o cartaz de lançamento da revista Pif Paf, em 1964; com Walt Disney em Hollywood em 1948.
Fale ou fax
Autodidata, Millôr é hoje um dos últimos homens da renascença carioca. Mantém seu grau de hedonismo calibrado com longas caminhadas pela orla e a orientação de uma personal trainer. Embora dificilmente dê entrevistas, se mostra um anfitrião agradável. Durante a conversa, só atende ao telefone quando reconhece a voz de quem obedece à sua secretária eletrônica: “Fale ou fax”. Tenta virar entrevistador a todo momento e usa o humor para ocultar ou escancarar o que quer dizer.
Em poucas palavras, Millôr é um gênio completo que transita pela dramaturgia, música, literatura, cinema e desenho. Por isso, quando conta que inventou o frescobol ou que foi vice-campeão da pesca ao atum na Nova Escócia, o que pode parecer falsa modéstia é apenas constatação do incontestável: ele não tem substitutos vivos e sabe disso. Em seu ateliê em Ipanema, fala abertamente sobre religião, política, sexo, drogas, felicidade e idiotices. As horas passam rápido. De tempos em tempos os cucos dos relógios chamam a atenção. Cinco badaladas depois, a entrevista acaba. Millôr fica na cabeça.
A argamassa da obra de Millôr é feita de pensamentos soltos, textos curtos e frases. As melhores são como cacos de algo que nunca se quebrou — sua genialidade é tão profunda quanto rasteira e tão séria quanto humorística. Abaixo, o guru do Méier em seus melhores momentos.
“Nunca deixe de fazer amanhã o que pode deixar de fazer hoje.”
“Celebridade é um idiota qualquer que apareceu na televisão.”
“Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos.”
“A alma enruga antes da pele.”
“Os pássaros voam porque não têm ideologia.”
“Todo homem nasce original e morre plágio.”
“Divagar e sempre.”
“A beleza é a inteligência à flor da pele.”
“Deus é bom. Está é muito mal cercado.”
“A coisa mais ridícula é todo mundo.”
“Nossa vida é um dramalhão, que os outros, naturalmente, assistem como comédia”.
Fonte: Trip 133 – Disponível Aqui, disponível em 01/06/2005.