No encontro das histórias e do tempo, homenageamos a guerreira Tomie Otake, através dos “Sonhos” de um mestre do cinema japonês, Akira Kurosawa: são oito delírios oníricos de um grande homem, um universo poético, perturbador e impensável para a delicadeza do “bambu forte” (Ohtake em japonês).
Muitos especialistas já comentaram a despedida da guerreira Tomie Ohtake (1913, Kyoto – 2015, São Paulo), da vida e obra dessa magnífica mulher, considerada “patrimônio da arte contemporânea brasileira” e, claro, de sua surpreendente frase aos 101 anos “Ainda eu não estou sentindo nada de 100 anos. Nem percebi ainda”.
Janaína Lepri de “O Jornal da Globo” lembrou que “só mesmo a morte conseguiu parar a artista plástica, uma trabalhadora incansável. Ela ensinou aos filhos que arte não deve ser privilégio de quem pode mais”.
E falando de arte, nossa homenagem não poderia ser outra: o cinema de Akira Kurosawa (1910, Tóquio – 1998, Setagaya) e seus “Sonhos” (Yume, 1990): são os oito delírios oníricos de um grande homem, um universo poético, perturbador e impensável para a delicadeza do “bambu forte” (Ohtake em japonês).
No encontro das histórias e do tempo, chega um conterrâneo, um mestre do cinema japonês, um dos cineastas mais importantes do Japão que, com seus filmes iluminou e inspirou a grande tela da vida de todos nós, seres inconformados, curiosos e eternamente sedentos de mais e mais respostas, que, aliás, nunca vem. Mas, para quem não sabe, esse, entre tantos, é um dos mistérios da existência.
“Sonhos” (cinema, pintura e poesia) para a menina/moça japonesa e para a mulher/senhora brasileira, Tomie Ohtake
Uma vez, tive um sonho…
1º Sonho – “A Raposa” – um retrato da rígida e conservadora cultura japonesa. Uma criança desobedece à sua mãe e foge para a floresta com o intuito de espiar a dança de casamento das raposas. Quando o menino volta da floresta, sua mãe diz que uma raposa veio à sua procura e caso ele queira reaver sua honra deve praticar o harakiri (suicídio dos samurais) ou voltar à floresta e pedir desculpas a elas.
2º Sonho – “O Jardim dos Pessegueiros” – a preocupação com a natureza, o coração de todos nós. O irmão mais novo de uma família, ao servir chá para as irmãs, depara com uma moça que foge. Indo ao seu encalço, nota que ela é uma boneca e se depara com os pessegueiros da sua casa totalmente cortados, restando só tocos. Os espíritos dos pessegueiros surgem para ele e, em uma dança melancólica, dizem que as bonecas são colocadas para enfeitar e festejar a florada dos pessegueiros, mas como eles não mais existem naquela casa não fazia sentido a presença das bonecas.
3º Sonho – “A Nevasca” – inevitavelmente, “Ela” chega… O líder de uma expedição, junto com seu grupo, se vê em meio a uma nevasca. Eles sucumbem ao temporal, mas repentinamente surge uma linda mulher que envolve o líder com uma echarpe prata. Ele percebe que ela é a morte, que se transforma em uma horrenda figura, então ele vê que está próximo do acampamento e tenta acordar os companheiros, mas não consegue. Ouve então uma corneta, indicando que o acampamento está mais próximo do que imagina.
4º Sonho – “O Túnel” – a constatação inconformada de que “Ela” passou por mim… Ao entrar em um túnel o capitão de um exército é surpreendido por um cão, que ladra para ele. Atravessa então o túnel em curtos passos. Na saída ouve alguém caminhar e se depara com um dos seus soldados morto em combate, que pensa não estar morto.
5º Sonho – “Corvos” – na dança das cores brotam a vida e a morte, tudo pela arte. Um jovem pintor, ao observar a arte de Van Gogh, entra nos quadros e se encontra com o artista, que indaga por qual razão ele não está pintando se a paisagem é incrível, pois isto o motiva a pintar de forma frenética.
6º Sonho – “Monte Fuji em Vermelho” – o fantasma e a dor de uma tragédia nuclear, a natureza e o homem em guerra. O Fuji entra em erupção e ao mesmo tempo ocorre um incêndio em uma usina nuclear, provocado por falha humana. É desprendida no ar uma nuvem de radiação. Um homem relata ser um dos responsáveis pela tragédia e diz preferir a morte rápida de um afogamento à morte lenta provocada pela radiação.
7º Sonho – “O Demônio Chorão” – até “Ele” sofre e lamenta. Ao caminhar, um viajante encontra um demônio, que lamenta ter sido um homem ganancioso e, como muitos, transformou a terra em um lastimável depósito de resíduos venenosos.
8º e Último Sonho – “Aldeia dos Moinhos de Água” – E o jovem diz: “Mas a noite é tão escura!” O velho responde: “Sim, a noite tem de ser assim. Por que a noite deveria ser clara como o dia? (…) Hoje em dia as pessoas esquecem que elas são só uma parte da natureza”. Um viajante chega a um lugarejo conhecido por muitos como Aldeia dos Moinhos de Água. Lá não há energia elétrica e tampouco urbanização. Um idoso diz que os inventos tornam as pessoas infelizes e que o importante para se ter uma boa vida é ser puro e ter água limpa.
Lembrando o filme “Madadayo”, do mesmo Kurosawa, e o também guerreiro professor que luta pela vida, eu perguntaria a Dona Tomie: “Madakai?” (“ainda não?”) – “Ainda não se cansou de viver?”
E sei que ela diria: “Não, ainda não, as cores, as curvas e as formas me esperam, freneticamente. Só que agora, do outro lado, no avesso das coisas, oculta e muito bem guardada no coração de Deus e dos homens”.
Trailer “O Jardim dos Pessegueiros” – https://www.youtube.com/watch?v=LUlrzGQS5ns
Trailer “Aldeia dos Moinhos de Água” – https://www.youtube.com/watch?v=BGhAHcSYp4w
Referências
LEPRI, J. (2015). Morre Tomie Ohtake, aos 101 anos. Disponível em https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/02/morre-tomie-ohtake-aos-101-anos.html