“Só não mexe com a cerveja” – a velhice como produto

A abordagem midiática passou por mudanças significativas nos últimos dez a vinte anos. Retratar o idoso como um indivíduo sexualizado, capaz e ainda dotado de qualidades pode trazer vantagens significativas à propaganda, pois é, afinal, uma estratégia para que o consumidor deseje o material apresentado. O que se busca neste espaço é problematizar a mudança que se estabelece na relação com o sujeito idoso a partir da consolidação de ideais pós-modernos na sociedade ocidental.

Thaís Mateo Zygmunt e Ruth Gelehrter da Costa Lopes *

 

so-nao-mexe-com-a-cerveja-a-velhice-como-produtoA pós-modernidade ocidental se constitui por elementos característicos: a terceira revolução industrial, acompanhada do advento das redes sociais e a “liquefação dos laços humanos” ocorrem em conjunto com a cultura da medicalização da vida, da desmistificação do mundo, do aumento mundial da expectativa de vida, do advento democrático, da propaganda, entre outros.

Pensar a velhice na atual conjuntura pressupõe uma análise contextual sócio-histórica; para tanto, é necessário que se leve em consideração mudanças ocorridas no ocidente nas últimas décadas. A comparação é um método que visa, acima de tudo, promover reestruturação de pensamento e amplitude de compreensão ao observarem-se fenômenos, e não uma tentativa de qualificar os fenômenos comparados.

Primeiramente, deve-se levar em conta o aspecto paulatino das mudanças sociais. O surgimento e ascensão de ideologias que marcam uma época ocorrem gradativamente e carregam consigo resquícios da cultura e ideologia precedente, assim como sinais das posteriores. Pode-se pensar numa representação que simbolize tal constatação a partir de uma sucessão de curvas normais que se entrecruzam, sendo cada uma delas a representante de um movimento social, e os pontos da linha abscissa um determinado tempo histórico. Quando se fala em mudança social pretende-se fazer, portanto, um recorte meramente didático, já que se sabe da intrinsecabilidade e ocorrência mútua desses fenômenos.

A forma como se lidou com a velhice na fase Moderna é um reflexo da sociedade Hardware, herdeira de ideais de acumulação de bens de consumo e produtividade em moldes industriais. Sujeitos idosos pertencentes a esse contexto incorporaram o sistema na medida em que permaneceram capazes de acumulação de bens/capital ou de produzirem na escala determinada. Foram negligenciados conforme sua crescente inutilidade às instituições de trabalho e incapacidade de corresponder às expectativas compartilhadas pela comunidade a qual pertenciam. Ao se tornarem uma “disfunção”, ficaram restritos, assim como quaisquer interferências ao andamento normal do sistema corrente, ao âmbito privado.

Não se admitiu, na idade Moderna, que as imperfeições sistêmicas ficassem visíveis no âmbito público. Por outro lado, a valorização desses sujeitos na época é comparável à que se dava aos bens duráveis: maior a durabilidade, melhor a qualidade. Daí a criação da ideia valorativa de que com a velhice vem a Sabedoria e a exigência de respeito.

Diversas foram as transformações ocorridas nessa articulação, e a revolução tecnológica cumpriu papel essencial em se tratando da conversão Hardware para Software. A então Pós-modernidade se valeu do novo sistema econômico e social para reestruturar as relações humanas, integrando em suas condições a globalização, a democratização das hierarquias e a valorização das individualidades. A era Software trouxe à humanidade o que o sociólogo Zygmunt Bauman nomeou “liquidez” e, como consequência, a forma de apreensão da velhice.

“Numa época em que os dispositivos tecnológicos tornam próximos e presentes acontecimentos separados por fusos horários, climas e injunções geopolíticas, as longas durações e os extensos territórios ficam obsoletos. Eles pertenciam, segundo Zygmunt Bauman, à era do hardware, ou “modernidade pesada”, em que tamanho, volume, peso, parques industriais e conquistas territoriais constituíam medidas de poder. O mundo de agora valoriza a instantaneidade do software, que delineia uma “modernidade líquida”, em que prevalecem a leveza, a flexibilidade e o mínimo de estruturas, indispensáveis à volatilidade das transações financeiras eletrônicas” (MORAES, 2002).

Diferentemente da era anterior, nas primeiras fases da modernidade líquida vê-se que o Velho desempenha o papel do desatualizado, do obsoleto, do superado. Perde-se a valorização da experiência de vida, a necessidade de substancialidade; a riqueza não está mais no conteúdo, mas na forma. O auge do capitalismo é vivido em conformidade com a glorificação da imagem (jovial), do produto (novo) e do corpo (saudável) e por isso a estigmatização do Velho: este que não cria, não serve, não renova.

O quadro somente muda de aspecto ao se levar em conta um grupo essencial ao sistema, ao qual pertencem esses sujeitos: o de consumidores. Este texto problematiza o cenário de produto no qual a velhice aparece atualmente e procura entender os fatores que fazem esses sujeitos se adaptarem ao sistema.

A velhice na propaganda

Temas considerados por muito tempo tabus vêm surgindo de forma naturalizada, mesmo que pela via do humor, para dar conta da demanda de um grupo de consumidores antes negligenciado: os Velhos. Buscando compreender as novas formas de apreensão da velhice pelo sistema econômico vigente, optamos por analisar uma propaganda de televisão intitulada “Só não mexe com a Cerveja”. Nesta, enaltecida como revolucionária por retratar a velhice de forma condizente com a realidade, pode-se encontrar meios para se pensar a nova geração de velhos e as formas de integração destes na sociedade de consumo.

Levando-se em consideração o envelhecimento da população mundial decorrente do aumento da expectativa de vida e diminuição da natalidade, acredita-se na adaptação das diversas empresas à demanda do público ao qual desejam atender, portanto a aproximação com sua vivência. Críticas a respeito do tipo de características permitidas no universo da propaganda surgirão conforme o desenvolvimento do trabalho, assim como ressalvas ao se compreender o consumismo como meio de integração social.

A propaganda mencionada se passa numa cervejaria e tem a duração de 31 segundos. As personagens são um jovem (dá-se a entender que trabalha na área de propaganda), cinco senhores e uma senhora, dona Yolanda. O diálogo transcrito na íntegra é o que se segue:

– Senhor 1: Pessoal, Chegou o lúpulo da República Tcheca!

– Todos os homens: Saúde! (brindam).

– Senhor 2: 140 anos trabalhando aqui e ainda fico abismado: como a [marca da cerveja] é gostosa!

– Jovem: Falando em gostosa, vocês não querem fazer um comercial com mulher gostosa, né?

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– Senhor 2: Não.

– Jovem: O que a gente faz então, para deixar a nossa propaganda mais jovem?

– Senhor 3: De novo???

– Senhor 4: Você pode fazer o que quiser, só não mexe com a cerveja.

– Senhor 5: E nem com dona Yolanda. [Ele pisca para dona Yolanda e ela retribui]

– Senhor 5: Tô pegando!

Os senhores da propaganda carregam as marcas da velhice, características físicas marcantes de suas idades: cabelos brancos, calvície, corcundas, sobrepeso, rugas, vozes enrouquecidas, dedos tortos e óculos que denunciam o perecimento da visão. Para nossos fins, o que se destaca é o fato de serem essas pessoas justamente o estereótipo da velhice, e ainda assim terem suas “vozes” apreciadas por retomarem os valores Modernos citados anteriormente: a qualidade relacionada à “perduração”. Apesar de ser esta uma forma ainda primitiva de se retratar a velhice, pois se utiliza desses valores unicamente em prol da venda de um produto, ela abre margem para a reflexão sobre se seria este o único modo de introduzir os velhos reais no universo da venda. Fugindo-se também da imagem do velho-rejuvenescido, muito utilizada em propagandas farmacêuticas, de turismo, entre outras, a tentativa é de se pensar sobre como a velhice pode ser paulatinamente introduzida no imagético da sociedade consumidora sem maiores estranhamentos, gerando assim, uma maior empatia com relação a ela.

A indústria da propaganda e o capitalismo pós-modernos, de forma geral, possuem uma forma peculiar de inclusão social: a partir do momento em que um grupo é potencialmente consumidor, se torna integrado ao rol de indivíduos pelos quais a sociedade se interessa. “Em um bom exemplo da perspicácia da história, desejos utópicos acharam uma segunda vida como correntes de sentimento que legitimaram a transição para uma nova forma de capitalismo: pós-fordista, transnacional, neoliberal” (FRASER, 2009).

so-nao-mexe-com-a-cerveja-a-velhice-como-produtoHá a permissão, portanto, com a maior flexibilidade já vista na história, de que reivindicações sociais ganhem visibilidade assim que possuam atributos vendáveis. Os movimentos hippie, Black Power, LGBT, a reivindicação de participação das mulheres no mercado de trabalho, etc. são modelos daquilo que se vêm agregando (principalmente) à vivência urbana ocidental. A lógica é a de que as diferenças devem ser aceitas, o que soa ilustre o suficiente para que seja reproduzida, mas que esconde nada menos que um mercado produtivo quando repercutida sem conscientização.

Algumas vantagens podem ser tiradas da veiculação dos movimentos sociais à propaganda: a introjeção da imagem tende a mobilizar empatia perante o grupo retratado. Seus esforços podem aparecer em forma de militância – para muitos, inconveniente – em determinados ambientes, mas chegam, graças à globalização e tecnologia, como produto exótico a outros. A imagem da mulher executiva, os turbantes e símbolos como a foice e o martelo, são alguns exemplos. Logicamente, o aspecto reivindicatório é negligenciado ao se absorverem tais imagens – a apropriação cultural se dá, via de regra, pela apropriação da forma – mas pensar numa solução de inclusão social sem levar em consideração o sistema posto pode ser prejudicial, na medida em que se torna ilusória.

Há um enfoque na teoria psicanalítica que auxilia na compreensão da “renegação” da velhice com o perpassar da História. O apego ao Ego, ou narcisismo, é uma dimensão psíquica que tende a imperar na sociedade atual, mas que esteve presente em todas as gerações, em maior ou menor grau. “São estatutos desse tempo pós-moderno, a cultura do narcisismo – evidenciando um mundo centrado no Eu, no qual a individualidade é sempre autorreferente e a estetização é a finalidade maior do sujeito – e a sociedade do espetáculo – apontando a exigência do espetáculo como catalisador dos laços sociais” (BARROS; DOCKHORN; MACEDO, 2008). A morte, principal opositor do eu narcísico, é evitada mais veementemente quanto maior a exaltação do Eu no meio social. Essa morte não necessariamente é a morte real, mas também a simbólica, que nada mais significa que a abstenção do Eu em função do Outro.

Entende-se, a partir dessas formulações, um dos motivos pelos quais se evita a defrontação com a velhice na atualidade. Numa conjuntura social onde se glorificam as realizações individuais, o cuidado e o contato com a morte – ou, o outro – tendem a se tornar distantes. “[…] E, no desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo” (FREUD, 1921, p. 130). Daí a urgência da empatia em face dos sujeitos idosos: se atribuídos de humanidade ao serem retratados, haverá apelo ao espelho da população jovem, o que pode se tornar eficaz a curto, médio e longo prazo.

Não se pretende, com essas afirmações, aceitar e negligenciar as críticas ao modo de vida capitalista. Visou-se, sim, problematizar a retratação do velho real na mídia, apontando os aspectos positivos e negativos desta.

Reflexões Finais

Há a necessidade de se pensar meios diferenciais em se introduzir a velhice no campo simbólico social, sem que esteja necessariamente vinculada ao consumo. Para tanto, conta-se com um papel importante da propaganda que é o de trazer ao espectador, em alguma medida, a humanidade daquele que retrata. Apesar dos inúmeros defeitos de tal forma de inclusão social, acredita-se, em certa medida, nos benefícios que a mídia pode trazer a essa categoria, pois pode-se fazer o uso, em cada época histórica, dos artifícios presentes no arcabouço social para se obterem vantagens aos sujeitos em necessidade.

Referências

FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, 2009.

FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. v XVIII. p. 89-179, 1974.

MORAES, Dênis de. Mídia e globalização neoliberal. Contracampo, v. 7. 2002.

* Thaís Mateo Zygmunt – Aluna do curso de graduação de Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica – PUCSP, 5º semestre. Ruth Gelehrter da Costa Lopes – Supervisora Atendimento Psicoterapêutico à Terceira Fase da Vida. Profa. Dra. do Programa de Estudos Pós Graduados em Gerontologia e do Curso de Psicologia, FACHS. E-mail: [email protected].

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