Pergunte a várias pessoas o que significa ter saúde ou estar doente e, certamente, cada uma delas terá uma resposta diferente. Embora saúde e doença sejam conceitos com os quais lidamos no dia a dia, não é simples tentar defini-los.
Fernanda Marques *
A elaboração conceitual, linguística, não consegue apreender toda a complexidade da experiência do adoecimento.
O fato de sentir-se bem não assegura a inexistência de disfunções ou lesões. E há aqueles que, mesmo reconhecendo-se portadores de doenças crônicas, mantêm uma atitude de grande positividade. Por outro lado, pode-se experimentar um mal-estar que, por não enquadrar-se em uma categoria diagnóstica, não chega a ser visto pela medicina como doença.
Saúde e doença, então, podem não ser definidas do mesmo modo na perspectiva da medicina e na daqueles que as experimentam?
Refletir sobre questões como essa é o objetivo do livro Os Sentidos da Saúde e da Doença, mais novo título da coleção Temas em Saúde da Editora Fiocruz. A obra é assinada por Dina Czeresnia, médica, doutora em saúde pública, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz); Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel, médica, doutora em filosofia, também pesquisadora da ENSP/Fiocruz; e Rafael Antonio Malagón Oviedo, odontologista, mestre em educação, professor da Universidad Nacional de Colombia.
Os autores não consideram satisfatórias definições de saúde e doença estritamente científicas, fundamentadas apenas no conhecimento médico e biológico, e em parâmetros quantitativos. Ou seja: eles vão muito além daquela velha máxima biomédica de que saúde é a ausência de doenças. Ao longo do livro, a saúde é apresentada como uma capacidade para lidar com a existência, salientando-se que uma vida saudável não pode excluir tensões – a ideia de um estado de total e absoluto bem-estar não é compatível com a realidade vivida. Logo, a saúde é uma potência para que se criem estratégias de adaptação ao meio e, nesse sentido, aprender com a experiência da doença é também um sinal de saúde.
Não resta dúvida de que essa experiência está hoje profundamente transformada pelos novos recursos tecnológicos para diagnóstico e tratamento. Contudo, o sentido último dessa experiência não reside na tecnologia, mas no valor atribuído pelos indivíduos ao diagnóstico da doença e ao tratamento ou à própria vida depois do diagnóstico. “A atitude assumida diante do diagnóstico, da evolução e do tratamento interfere no prognóstico. O processo terapêutico não deve restringir-se aos seus aparatos técnicos”, lembram Dina, Elvira e Rafael. “Essa consciência deve ser cultivada por todos e, principalmente, por aqueles que são responsáveis pelo cuidado”, completam.
Pensar os sentidos da saúde, portanto, exige uma reflexão sobre ética. Exige também uma articulação com dimensões políticas, artísticas e filosóficas. “A ciência não é a única instância de elaboração dos conceitos de saúde e de doença. Na atualidade, o conhecimento acerca da doença se funda, predominantemente, na ciência, mas outros elementos integram a percepção da doença, que é parte de um processo cultural mais amplo”, afirmam os autores. “Compreender o conceito de saúde com essa amplitude suscita uma transformação no sentido de adequação das práticas”, acrescentam.
Essa adequação envolve um encontro das ciências médicas com outros sentidos possíveis, sabedorias tradicionais, recursos alternativos para lidar com a relação entre vida, saúde, doença e morte. Envolve o reconhecimento da importância das subjetividades no processo saúde/doença, ele próprio constituído em um contexto cultural, social e histórico – afinal, o que parece saudável em um determinado momento pode ser considerado patológico em outro.
As transformações dos conceitos de saúde e de doença ao longo do tempo são analisadas no livro, que não só aborda a formação desses conceitos, mas também as questões ligadas à prevenção de doenças e à promoção da saúde. Como comparar as epidemias, pestes, quarentenas e confinamento dos leprosos na Idade Média à ocorrência, na atualidade, de surtos que obedecem a certos padrões epidêmicos, às doenças emergentes, reemergentes e negligenciadas? Como pensar a busca incessante pela saúde perfeita e o discurso do risco? “Embora não haja exatamente uma conclusão, há uma consideração final a ser feita: a prática em saúde deriva de uma construção interdisciplinar, envolvendo dimensões simbólicas e culturais, sociais e filosóficas. Vimos, aqui, que não há uma definição precisa e neutra de saúde, assim como os conceitos de doença mudam no decorrer da história levando a transformações nas práticas individuais e coletivas”, resumem Dina, Elvira e Rafael.
E as transformações que se anunciam hoje, segundo os autores, sinalizam “a necessidade de uma visão mais complexa, mais ecológica da relação homem/mundo”. Uma visão que pode ser enriquecida por aportes de textos literários. Entre as sugestões de leitura apresentadas no livro, figuram, entre outros, livros como A Morte de Ivan Illich, de Leon Tolstoi; A Peste, de Albert Camus; Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago; Os Sertões, de Euclides da Cunha; e O Alienista, de Machado de Assis.
* Fernanda Marques é jornalista da Editora Fiocruz. Disponível Aqui. Publicada em 13/01/2014.