Crônica revela o respeito e a cumplicidade de três grandes amigas que ao longo de 37 anos continuam juntas. Um exemplo de como as amizades podem perdurar e beneficiar um bom envelhecer.
Rita Amaral (*)
Não me lembro de quem teve a ideia, mas Inês, Nadir e eu resolvemos fazer uma viagem ao Rio de Janeiro sem maridos e filhos. Aos poucos nosso plano foi tomando corpo. Fiz uma busca na lista telefônica de um hotel em Ipanema, de frente para o mar. Era só atravessar a rua e…
Eu particularmente adorava o Rio: a orla marítima, a praia, olhar para as ondas, mergulhar meu pé na areia fofa. Para mim era a cidade onde nasceu a bossa nova, que gosto até hoje: “depois de trabalhar toda semana, meu sábado não vou desperdiçar. Já fiz o meu programa pra esta noite e sei por onde começar. Um bom lugar para encontrar – Copacabana…” Compôs Dick Farney na década de 60.
Nós também não poderíamos desperdiçar aquele tempo de liberdade!
Éramos ex-colegas de faculdade que continuamos a nos visitar e nos ver depois de terminado o curso. Nesta época já tínhamos nos casado, nascidos nossos filhos: Inês teve quatro, Nadir três e eu dois.
Portanto quando pegamos a Dutra em direção à Cidade Maravilhosa fizemos as contas: além dos maridos deixamos pra trás nossa prole de nove crianças. Para entrarmos no clima desta aventura, eu tinha gravado em fita cassete algumas músicas que ouviríamos durante a nossa viagem. Naquela época a gasolina estava racionada e no meio do caminho sabíamos de um posto clandestino onde abastecemos o carro e combinamos que na volta pararíamos lá novamente. Um tanque de gasolina não cobria a distância São Paulo-Rio de Janeiro.
Estávamos muito excitadas com a possibilidade de termos um tempo só para nós, sem horários de alimentar as crianças, de preparar um jantar para esperar o marido e livres dos afazeres domésticos. Corria o ano de 1980.
Eu tinha um segredo que provavelmente teria que ser revelado nesta viagem. Previa que sim, pois ficaríamos juntas 24 horas. Não teria privacidade para ficar só nem por alguns minutos…nem para dar um telefonema sequer …
Começamos a sonhar com os dias à nossa frente: tomar sol sem sermos interrompidas por um dos filhos que queria um sorvete ou que precisaria voltar para o hotel para usar o banheiro ou qualquer outro pedido desta ordem.
Nas outras vezes que eu tinha ido de carro ao Rio, sempre alguém era o motorista. Desta vez eu estava na direção. Eu dividia minha atenção entre as placas indicando o caminho e as conversas com minhas amigas, interrompidas de vez em quando para adiantar uma das fitas cassete.
Inês se divertia ao pensar como seu marido iria lidar com as quatro crianças. Para ela, que estava acostumada todos os dias, tirava de letra tal tarefa. E ele? Como estaria se virando? A diversão era como se fosse uma vingancinha, pois cuidar de quatro era complicado.
Nadir estava mais relaxada, pois tinha uma empregada de longa data que sempre cuidava das três crianças já que ela trabalhava o dia inteiro. Aliás, o menor ficaria com uma das avós que adorava mimar o caçula.
Tínhamos saído bem cedo de São Paulo. A estrada era nosso caminho para os dias de solteirice: sem filhos, sem amarras.
Rio!, lá vamos nós!!!
Fizemos uma pausa no meio do caminho para um café e um xixi.
E mais estrada. Acelera! Inês e Nadir cantarolavam e riam. Um riso excitado, algumas vezes meio nervoso. Como seriam aqueles dias?
E eu conto ou não conto o meu segredo???
Finalmente chegamos ao nosso destino. Orientando-nos pelas placas, fomos nos encaminhando para Ipanema. Trânsito difícil – eu estranhando os motoristas que, diferentes dos paulistanos, dirigiam em alta velocidade. E nós um pouco perdidas naquela cidade.
Hotel Sol Ipanema! Lembro-me deste nome até hoje. Nosso quarto era num andar bem alto e de frente para o mar. Que lindo! Tinha procurado um lugar para estacionar meu carro, mas só encontrei uma vaga alguns quarteirões adiante. Mas para que precisaríamos andar de carro? Estávamos tão bem localizadas que a pé tudo estava ao nosso alcance.
Não podíamos perder tempo. Colocamos nossos biquínis e corremos para a praia.
Mais tarde andamos pelas ruas de Ipanema, olhando as vitrines. Moda mais ousada do que a de São Paulo. Tomamos sorvete, tiramos algumas fotos e ao cair da tarde retornamos para o hotel.
Estávamos exaustas. Muitos acontecimentos para um mesmo dia.
Pedi para minhas amigas ficarem no banheiro e que não saíssem de lá, pois eu precisava fazer um telefonema e não queria que elas escutassem minha conversa. Com certeza ficaram curiosas: para quem eu estaria ligando? Por que elas não podiam ouvir o teor da conversa? Passei por cima do meu constrangimento e da curiosidade delas e fiz a ligação. Passados alguns minutos avisei-as que poderiam sair de onde estavam confinadas.
Discretas, não me perguntaram nada. Assim foram aqueles quatro dias no Rio de Janeiro. Todas as tardes eu pedia que permanecessem no banheiro e eu corria para o telefone.
No dia da nossa volta para São Paulo fui buscar o meu carro onde estava estacionado, e qual não foi minha surpresa quando notei que o estepe e o som tinham sido roubados. Como faríamos nossa viagem de volta sem o estepe? Muito risco…
Na saída do Rio, paramos num lugar meio suspeito e comprei um pneu usado. Paramos para abastecer no meio do caminho no tal posto clandestino. Voltamos para nossas famílias e o cotidiano nos engoliu novamente.
Pude manter meu segredo. Cumplicidade de minhas amigas e respeito para o que talvez elas não estivessem preparadas para dividir pensava eu naqueles 1980. Ou eu estava sem coragem para revelar.
Tudo aconteceu há 37 anos!
Quando nos lembramos desta viagem, rimos muito da situação.
Estamos em 2017. Nossa amizade continua desde o início da faculdade em 1966. Nos chamamos carinhosamente de amigas-irmãs. Nadir ficou viúva há um ano, e tem três netas. Inês separou-se, não se casou novamente, e tem três netos e eu casei-me pela segunda vez e tenho uma neta.
(*) Rita Amaral – Pedagoga, especialista em Gerontologia, diretora da Oficina Memória Viva. E-mail: [email protected]