Vale a pena pensar em como a eutanásia pode ser libertada da medicina da mesma maneira que, digamos, os casamentos foram libertados da religião. Há uma ampla e selvagem variedade de maneiras pelas quais podemos querer ter a liberdade de morrer.
Quem nunca pensou em morrer da maneira que gostaria? Ou pensado, ora, se a vida é nossa, a morte também deveria. Ao menos é o que muita gente vem se questionando ante um envelhecer onde nós não somos mais os mesmos. Ninguém nos perguntou se queríamos viver tanto, muito menos em quais condições gostaríamos de viver a vida. Não estaria na hora de retomamos os rumos de nossa civilização em nossas mãos? Muitas pessoas ultrapassaram a visão religiosa segundo a qual nosso tempo de morte não pode ser de nossa escolha. E hoje há um número crescente de países onde o suicídio assistido por médico e a eutanásia são permitidos em um contexto médico. Mas por que pensar que o direito de escolher nosso final é dado legitimidade apenas, se é que existe, por motivos de saúde? Por que não temos o direito de terminar nossas vidas não apenas quando queremos, mas também como?
É disso que se trata o texto “Death by design”, de Daniel Callcut, escritor, filósofo, do Reino Unido. Como bom escritor, ele inicia seu artigo com um relato científico de um anúncio em outdoor de estrada de uma empresa que faz design de eutanásia. E de cara ele esclarece: atualmente não há organizações ou empresas desse tipo, por enquanto… Ele explica que a palavra “eutanásia”, do grego “boa morte”, pode ser facilmente perdida nos debates contemporâneos sobre a eutanásia, cuja ênfase está nos direitos de uma pessoa muito fragilizada em termos de saúde.
Na realidade, Daniel Callcut pretende com esse texto liberar a discussão sobre o direito de morrer do contexto médico padrão e cultivar nosso senso de possibilidades com relação à morte. Diz que por razões médicas práticas, não podemos sempre tirar a eutanásia dos médicos, mas vale a pena pensar em como a eutanásia pode ser libertada da medicina da mesma maneira que, digamos, os casamentos foram libertados da religião. Para ele, há uma ampla e selvagem variedade de maneiras pelas quais podemos querer ter a liberdade de morrer. E fazer isso nos permite pensar na eutanásia – uma boa morte – em circunstâncias menos sombrias. O que ele escreve é, digamos, fazer da morte um evento, como o casamento, em que se escolhe a data, a cerimônia, os convidados, a música.
CONFIRA TAMBÉM:
A morte como evento já acontece no Brasil, em que há um mercado promissor e muito caro que “busca” oferecer um velório mais humanizado, proporcionando um espaço “mais acolhedor”, com salas de descanso e agrados para os cinco sentidos de quem fica, inclusive com comidas que dão sensação de conforto e ambientes aromatizados e com músicas relaxantes. Há cemitérios que têm psicólogos e profissionais de hotelaria. Mas são poucos que tem acesso a isso, assim como são poucos os que pensam na morte. Uma pesquisa realizada pelo Sincep (Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil) revelou que só 10% dos brasileiros se prepara de alguma forma para a hora da morte – pela aquisição de planos funerários, por exemplo.
A morte continua sendo um tabu e está sempre associada a dor e tristeza. Não é o caso de nossa colaboradora Maria Christina L. de Góes, que no belíssimo artigo “Medo de não morrer”, faz um desabafo público:
A morte, a partir dos 70, se torna presente. É presente para mim. Gosto da ideia morte presente. De uns tempos para cá me sinto próxima dela. Quero perder o medo como minha amiga, por isso me interesso tanto pela conversa dela. Quero que a morte se torne familiar e ouvindo a colega sinto um certo destemor. Como ela chegará para mim. Qual é o meu querer? Como e quanto a quero?”
Um texto que nos convida a ver a morte de forma positiva.
Nessa mesma ideia de positividade da morte, recomendo assistir o curta-metragem ‘Morte‘ (2002, Brasil. 15 minutos), do diretor José Roberto Torero e protagonizado pelos atores Laura Cardoso e Paulo José, em que um casal se prepara para a grande viagem do fim da vida, não esquecendo as flores, a música e a bagagem. Esse curta fez parte da programação do Sesc Piracicaba no ano passado que desenvolveu o Projeto ‘Finitudes’, liberando justamente a discussão sobre nossa condição finita, afinal, a vida é um processo normal e natural. Um passo que precisa ser dado antes de discutirmos o que propõe Daniel Callcut que, aliás, assinala, a rigor, nunca experimentamos a morte, pois a morte é o fim da experiência.
No ano passado, o irlandês Shay Bradley, bem espirituoso, ensaiou essa experiência. Ele sabia que ia morrer, e resolveu brincar com a família no seu próprio funeral, deixando gravado um áudio em que dizia: Olá… alguém me tire daqui! Eu posso escutar vocês. Olá… Olá… Olá…, por favor. Estou nesta caixa. Olá, como você está? Olá, eu ligo para dizer adeus. O áudio foi transmitido no dia do enterro. Ele queria que as pessoas sorrissem e não ficassem tristes.
Daniel Callcut também elenca alguns exemplos de funerais imaginativos e planos póstumos criativos, provocando-nos e nos estimulando a pensar sobre o que fazer depois de sair do planeta. Ele escreve que os argumentos tradicionais para o suicídio assistido e a eutanásia apelam à compaixão e à liberdade individual. Às vezes, a morte é uma bondade. E é assim que olhamos para nossos animais quando estão sofrendo muito. Nós os sacrificamos. Então Callcut pergunta: Por que insistir para que os humanos continuem sofrendo – depois de deixarem claro que não querem – quando aliviaríamos um cachorro ou um cavalo?
A mesma pergunta foi feita por Rubem Alves cerca de um ano antes de sua morte, no documentário Memórias: Rubem Alves, O Professor de Espantos, exibido pela TV Câmara em 19/01/13. O escritor que entendia como poucos a alma humana, falou de um amigo que com mais de 90 anos, sofrendo com dores horríveis, pediu ao seu médico para aumentar a dose de morfina, e o médico, olhando para seu amigo, disse repreendendo-o: o senhor está me sugerindo que eu faça a eutanásia? No documentário Rubem Alves comenta que quando vemos um cachorro querido sofrendo muito, nós que o amamos demais, levamos ao veterinário para que este lhe dê uma injeção e o cachorro parta em paz. Há certas situações que nós temos o direito de “escolher se eu vivo ou se não vivo”, diz Rubem Alves.
Como Callcut escreve, empatia e compaixão podem nos levar a defender o direito ao suicídio assistido e à eutanásia. E isso pode também nos levar a defender o direito de escolher a configuração de nosso fim. Se um ser humano é ajudado a morrer, então não há razão para que o fim deva sempre estar em um hospital, mesmo que, por razões práticas, isso às vezes seja necessário.
Callcut, no entanto, lembra que a ideia mais central do individualismo liberal é que sua vida é sua e que você tem o direito de vivê-la como achar melhor. Portanto, de acordo com o espírito desse ideal, levar sua vida como você deseja inclui o direito de encerrá-la quando você desejar. Ou seja: você tem o direito de morrer, lembrando que estar vivo em algumas situações seja um destino pior que a morte, e a morte seria um benefício.
O ideal da liberdade individual já derrubou muitos tabus sociais e sexuais: por que não a morte? Pergunta Daniel Callcut. E ele mesmo responde: se a preocupação é que a legalização da eutanásia leve multidões a organizar sua morte, então acho que devemos nos preocupar com o motivo de ter essa preocupação. E questiona:
Tornamos a vida na Terra tão terrível que a morte é apresentada como uma alternativa bem-vinda? Eis uma questão que merece muitas reflexões, a começar por assumir maior responsabilidade pelo mundo social que criamos que está levando a um adoecimento da sociedade, transformando as pessoas em prisioneiras da existência.”
Mas daí Daniel Callcut nos coloca outra questão: será o caminho a seguir para transformar a morte em um mercado? Diz ele que o capitalismo cresce em parte colonizando aspectos da vida que antes eram considerados preciosos demais para serem considerados uma oportunidade de negócios, frequentemente comemorada como nova liberdade. Portanto, a ideia de que as pessoas planejem sua morte em coordenação com os negócios da eutanásia talvez pareça mais uma possibilidade distópica e capitalista do futuro próximo. A perspectiva pode produzir não apenas indignação moral, mas horror estético, afinal, transformar a eutanásia em um negócio é altamente questionável.
Mas o que Callcut nos propõe mesmo é que a eutanásia seja libertada da medicina, trazendo profundas reflexões sobre o direito de morrer, fazendo uma distinção entre direitos negativos e direitos positivos. Afinal, segundo ele, novas liberdades e novas habilidades frequentemente geram novas desigualdades. Quem teria acesso a eutanásia? Escreve Callcut que a morte, como diz o velho ditado, é o grande nivelador, e pelo menos um dos insights dessa expressão é o pensamento de que nenhum de nós consegue controlar quando ou como morremos. Mas a eutanásia de designer mudaria isso. Os pobres podem continuar a sofrer mortes dolorosas, naturais e não escolhidas, enquanto os ricos têm grandes festas de despedida, assinala Callcut. Será este o futuro?
O que ele argumenta em seu artigo é que os motivos liberais para permitir a eutanásia médica também são motivos para permitir a morte escolhida de maneira mais ampla – ou seja, não apenas por razões médicas, e não necessariamente em um ambiente médico. Podemos pensar de forma mais abrangente sobre que tipos de finais poderíamos escolher se tivéssemos a liberdade social e política para fazê-lo.
Neste workshop, veremos que as pessoas e seus cuidadores devem sempre estar no centro de qualquer plano de cuidados. Hoje os esforços mundiais se voltam para a implantação do Cuidado Centrado na Pessoa – essencial para o bom atendimento de qualquer enfermo. Trata-se de um método que desloca o olhar dos profissionais da saúde, voltado para a doença, trazendo-o para a pessoa acometida por qualquer condição ou agravo.
Inscrições abertas: https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/produto/workshop-cuidado-centrado-na-pessoa/