Debruçada na janela pela qual se avistava a rua de pedras, dedicou-se a observar as estrelas do firmamento, focada no brilho, no tamanho e na quantidade delas. Desde criança, as estrelas exerciam um fascínio imenso nas emoções de Alice! De repente, concluiu que elas poderiam ser suas aliadas na difícil e quase impossível arte de minimizar a saudade filial.
Vera Helena Zaitune *
A rotina de Alice era a mesma: idas diárias ao aeroporto a fim de se comover com os abraços das chegadas e partidas e viver numa casa sem portas e paredes internas. Estratégias que se impunha para dialogar com a saudade do filho amado que há mais de 10 anos teve que afastá-la da sua vida.
Havia dias em que a saudade era tanta que Alice se sentia pesada, lenta e angustiada, a secar as lágrimas que vertiam dos seus olhos incessantemente. Quando anoitecia, sentia-se aliviada ao constatar que aquele sentimento adormeceria com ela.
Nos dias festivos, tais como: o seu aniversário, o do filho, dia das mães, Natal e encerramento do ano, o desconforto se acentuava. Com o passar do tempo, Alice percebia que o mesmo se intensificava.
Novamente, arquitetou mais um recurso que, junto de outros, poderia aplacar a sua “dor de saudade”.
Debruçada na janela pela qual se avistava a rua de pedras, dedicou-se a observar as estrelas do firmamento, focada no brilho, no tamanho e na quantidade delas. Desde criança, as estrelas exerciam um fascínio imenso nas emoções de Alice! De repente, concluiu que elas poderiam ser suas aliadas na difícil e quase impossível arte de minimizar a saudade filial.
Lembrou-se que, na sua infância, nas noites de luar, colocava água na velha bacia da sua avó Florinda para ver sua imagem refletida através da luminosidade emanada de uma ponte imaginária que, por intermédio da lua, a conduzia para o céu e depois a devolvia à terra. Nessa viagem, sentia-se um anjo e uma menina a pisar no chão firme do quintal da casa em que viveu grande parte da sua vida.
O desejo e as lembranças desses momentos de ternura, levaram-na a tecer estrelas multicoloridas no seu tear que, por muito tempo produziu verdadeiras preciosidades em forma de colchas, toalhas e vestuários diversos, garantindo as despesas da casa. Tecia vigorosamente numa rotina incansável. No decorrer desse ofício, cantava muito particularmente as canções que entoava para seu filho quando o ninava para embalar seu sono.
Os vizinhos de Alice sentiram sua ausência naquelas noites quentes em que colocavam as cadeiras na calçada e nela proseavam para se distrair e tomar um ar mais puro. Preteriam os capítulos das novelas por acreditarem numa troca mais interativa e refrescante. Convidavam-na, mas ela sempre alegava afazeres inadiáveis.
Diante de tantas recusas, Miguel, o menino que ela sempre acolhia para ler histórias misteriosas e encantadoras, decidiu averiguar o que sucedia para justificar tal argumento. Alice se encontrava tão envolvida no ato de tecer que nem notou a sua presença. Tentou amenizar o semblante impactado do menino. Miguel emudeceu ao avistar tantas estrelinhas coloridas e brilhantes!
Nesse instante, a mãe de Miguel, dona Lídia, sentiu sua falta e dirigiu-se à casa da dona Alice, sabedora do carinho que o filho devotava àquela senhora, que se transformava ao ler e vivenciar os personagens das histórias, que depois eram verbalizadas detalhadamente para ela. Ficou estupefata diante do que viu! Teve que ser acalmada com um chá de erva cidreira colhida na horta do lugar.
Desta vez, dona Lídia foi a sabedora e mensageira de mais uma peripécia de dona Alice! Ouviu dela que, seu maior desejo era confeccionar um cordão imenso de estrelas que teria a sua casa como ponto de partida e a casa do seu filho como local de chegada. Assim, mesmo que não dialogassem, teriam naquele cordão o simbolismo e a certeza do amor inseparável que os unia!
Depois de ouvir toda a explicação e se comover com o relato, compartilhou com todos os vizinhos e conhecidos o projeto de dona Alice. Mais uma vez se surpreendeu, inclusive porque a demonstração de solidariedade ao sonho de dona Alice partiu de Miguel, que compreendeu e interpretou o que ouviu como uma linda e terna história de amor. Na cidade, não se comentava outro assunto a não ser sobre o mutirão das estrelas de dona Alice.
A cena que os habitantes do lugar viveram naquele domingo, até hoje é reproduzida oralmente pelas gerações que os sucederam. Cada morador, com uma agulha e linha de diversas cores, teceu o número possível de estrelas que, costuradas umas às outras; formou o desejado cordão da saudade.
Quanto à dona Alice, as notícias que conseguiram obter é que, depois de muitos anos, chegou ao local de destino. Sem forças e coragem para retornar, permaneceu numa localidade próxima à cidade em que seu filho residia na firme convicção de que, em meio a estrelas e abraços uma mãe que, silenciosa e agradecida, encontrou e vivenciou o sentido literal da palavra paz!
* Vera Helena Zaitune – Graduada em História, Mestre em História da Educação, Especialista em Educação para o Envelhecimento e Alzheimer. É colaboradora do Portal do Envelhecimento. Email: [email protected]